São Paulo, terça-feira, 18 de setembro de 2007

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CECILIA GIANNETTI

Cacos de vidro

Contentamo-nos em juntar cacos das manchetes de jornais; fossem de vidro, poderíamos cortar os pulsos

"AS COISAS estão no mundo", canta Paulinho da Viola, "só que eu preciso aprender". Falava a uma tal de minha (dele) nêga sobre a complexa baderna da existência, dando seu naco de compreensão sobre essa história. De lasquinha em lasquinha, montamos um mosaico acerca dela (da existência, não da nêga).
O que quer dizer o "todo"? Talvez já existam pesquisas avançadas buscando deduzir o significado da figura inteira.
Um PhD que já o tenha decifrado nalguma universidade do mundo (aquelas instituições que sofrem com menos greves de seus funcionários, arrisco afirmar, têm mais chance de estar à frente nesses estudos).
Mas a maioria de nós, sem tanto tempo para dedicar a uma escarafunchação mais detalhada da realidade, nos contentamos em juntar diariamente, sadicamente, os cacos das manchetes de jornais. Se fossem cacos de vidro as folhas, poderíamos cortar os pulsos com elas.
Pego a manchetinha que diz que Renan Calheiros foi absolvido. Meia dúzia de páginas de jornal me informam que esse pequeno acidente se deu em sessão secreta.
Coisa inédita no plenário do Senado. Houve socos e pontapés entre os deputados que não conseguiram entrar -ficaram de fora do pseudojulgamento- e os que tinham acesso à saleta onde decidiram, mais uma vez, que somos todos palhaços.
Recorto a manchetinha principal. Gosto de guardar esses cacos de vidro da nossa vida brasileira. Precisamos da memória dos jornais porque é a única coisa que temos.
Não temos respeito, cidadania. Mas temos a manchetinha guardada, que diz ser absurda a absolvição de criminosos.
Se fosse minha avó fazendo bolo, deixaria a manchete repousar feito massa -a véia fazia um bolo de pão que era assim: como a gente morrer, ser levado direto pro céu, sem estágio no purgatório, não, nenhum demônio, interrogatório, inquisição.
Mas nem dá tempo de deixar a manchetinha repousar. Não pára de sair caco de vidro no jornal e guardamos todos.
"Alto lá!", bate o pé um professor-doutor barbudo, magrelo, de tênis All Star, na tentativa de, com esse visual, conquistar aluna na faixa dos 20; leciona em universidade avançada na tal pesquisa do mosaico.
"Não é nada disso que acontece!", o barbudo esbraveja, do alto de seu tablado.
"Isso que você está fazendo com seus recortes de realidade é um pensamento maniqueísta, feio e bobo."
Deve ter razão. Eu só tenho recortes de jornal. O mosaico é cubista, surrealista, joãozinho-trintista, uma alopração assombrosa.
Não sei o que quer dizer do todo. O papa usa Prada. O papa dormiu, durante visita a mosteiro no Brasil, cercado por duas imagens de santos banhadas em ouro.
Noutro dia o papa recomendou que pensássemos menos em dinheiro. Renan Calheiros absolvido.
Estamos, portanto, progredindo espiritualmente. Estou meio embrulhada. Os recortes de realidade fazem pouco ou nenhum sentido para mim.


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