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CECILIA GIANNETTI
Cacos de vidro
Contentamo-nos em juntar cacos das manchetes de jornais; fossem de vidro, poderíamos cortar os pulsos
"AS COISAS estão no mundo", canta Paulinho da
Viola, "só que eu preciso
aprender". Falava a uma tal de minha (dele) nêga sobre a complexa
baderna da existência, dando seu
naco de compreensão sobre essa
história. De lasquinha em lasquinha,
montamos um mosaico acerca dela
(da existência, não da nêga).
O que quer dizer o "todo"? Talvez
já existam pesquisas avançadas buscando deduzir o significado da figura inteira.
Um PhD que já o tenha decifrado
nalguma universidade do mundo
(aquelas instituições que sofrem
com menos greves de seus funcionários, arrisco afirmar, têm mais chance de estar à frente nesses estudos).
Mas a maioria de nós, sem tanto
tempo para dedicar a uma escarafunchação mais detalhada da realidade, nos contentamos em juntar
diariamente, sadicamente, os cacos
das manchetes de jornais. Se fossem
cacos de vidro as folhas, poderíamos
cortar os pulsos com elas.
Pego a manchetinha que diz que
Renan Calheiros foi absolvido. Meia
dúzia de páginas de jornal me informam que esse pequeno acidente se
deu em sessão secreta.
Coisa inédita no plenário do Senado. Houve socos e pontapés entre os
deputados que não conseguiram entrar -ficaram de fora do pseudojulgamento- e os que tinham acesso à
saleta onde decidiram, mais uma
vez, que somos todos palhaços.
Recorto a manchetinha principal.
Gosto de guardar esses cacos de vidro da nossa vida brasileira. Precisamos da memória dos jornais porque
é a única coisa que temos.
Não temos respeito, cidadania.
Mas temos a manchetinha guardada, que diz ser absurda a absolvição
de criminosos.
Se fosse minha avó fazendo bolo,
deixaria a manchete repousar feito
massa -a véia fazia um bolo de pão
que era assim: como a gente morrer,
ser levado direto pro céu, sem estágio no purgatório, não, nenhum demônio, interrogatório, inquisição.
Mas nem dá tempo de deixar a
manchetinha repousar. Não pára de
sair caco de vidro no jornal e guardamos todos.
"Alto lá!", bate o pé um professor-doutor barbudo, magrelo, de tênis
All Star, na tentativa de, com esse visual, conquistar aluna na faixa dos
20; leciona em universidade avançada na tal pesquisa do mosaico.
"Não é nada disso que acontece!",
o barbudo esbraveja, do alto de seu
tablado.
"Isso que você está fazendo com
seus recortes de realidade é um pensamento maniqueísta, feio e bobo."
Deve ter razão. Eu só tenho recortes de jornal. O mosaico é cubista,
surrealista, joãozinho-trintista, uma
alopração assombrosa.
Não sei o que quer dizer do todo. O
papa usa Prada. O papa dormiu, durante visita a mosteiro no Brasil,
cercado por duas imagens de santos
banhadas em ouro.
Noutro dia o papa recomendou
que pensássemos menos em dinheiro. Renan Calheiros absolvido.
Estamos, portanto, progredindo
espiritualmente. Estou meio embrulhada. Os recortes de realidade
fazem pouco ou nenhum sentido
para mim.
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