São Paulo, terça-feira, 18 de setembro de 2007

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FERNANDO BONASSI

Os verdadeiros culpados

São os mordomos os primitivos causadores e mantenedores de nossa desigualdade social!

CONSIDERANDO QUE a humildade com que se apresentam não condiz com a intimidade dos luxos que compartilham;
Que organizam recepções únicas para exclusivos, confeitam bolos que não são repartidos, temperam petiscos oferecidos a uns poucos e supervisionam as vacas loucas e os burros de carga para a orgia, higiene e segurança dos churrascos dos carrascos;
Que se dedicam a manter arrumadas as camas e limpas as consciências acabrunhadas dos rentistas brasileiros desde cedo, acobertando as bruxas dos "castelos quatrocentões" com balelas de telenovelas, descrevendo as intenções de princesas boazinhas, governantes de reinos encantados com milhões de súditos otários e que conhecem muito bem os seus lugares lá embaixo;
Que são os melhores exemplos dessas histórias coloniais da carochinha;
Que curam com canjinhas da vovó e receitas de bolos jesuítas as ressacas dos rapazes violentos e as cachorradas das madames parasitas;
Que tratam como especiais os maiores arrivistas, pesarosos ou indiferentes a isso que se passa;
Que se impõem um serviço disciplinar, aconselhando aos meninos serem muito homens e às meninas, boas mulheres para casar, e entre uma coisa e outra, bons filhos e filhas das mães;
Que defendem a tradição das causas da família alheia contra a sua própria (que em geral nem tem casa, é um bando de feios, sujos e miseráveis que não têm boas maneiras mesmo);
Que estão mesmo, de todo modo, à disposição daqueles que nos indispõem, já que são os provedores dos mimos dessa gente indolente, mas inteligente o suficiente para fazer com que todos nós trabalhemos por eles;
Que dão forma e paladar aos arranjos e floreios que são feitos por cima e por baixo dos panos dessas mesas de jantar, onde os danos que os maganos vão causar, não haverão de ressarcir aos coitados mais mundanos;
Que são esses seus cuidados sofisticados os que poupam o sofrimento necessário ao amadurecimento dessa elite deitada eternamente nos berços esplêndidos das capitanias hereditárias;
Que sabem mais do que costumam dizer, são os primeiros a esconder o que pode comprometer dos terceiros e cumprem muito além do combinado em seus contratos formais, sem horário determinado e compensações salariais, numa eterna vida de trabalho que agride as mais árduas conquistas sindicais;
Que o fato de jamais terem chance de viajar com o conforto régio dos patrões não os inibe de preparar as malas suspeitas com que os eleitos das novas gerações varejam de tédio nos paraísos turísticos e fiscais civilizados;
Que engolem os pães amassados pelos diabos nos fundos dos palácios e ainda defendem seus uniformes alugados como se fossem as camisas de linho dos senhores, que engomam com carinho e com esmero de escravos;
Que o toque de classe que vendem para esses desclassificados das casas grandes evita aos pendores dos impostores os odores subterrâneos das senzalas... E que, sem sentirem o cheiro dos cadáveres que consomem em seus consomês, jamais aprenderão o custo dos pratos suados, mas prontos, que lhes servem para comer;
E que, apesar de tudo, quando são aposentados por invalidez, ainda se prestam à neurose, petulância, carolice, aridez, inocência ou avidez de seus proprietários, aumentando a sua mais valia com filmes documentários, teses de mestrado, livros de auto-ajuda a quatro cores de multinacionais e reportagens bobocas em revistas semanais de fofocas;
Que, em suma, são a fossilização da memória conservadora, os grandes fomentadores do hereditarismo cartorial; do beletrismo atávico, do legislativismo protecionista e ademais dos engenhos monarquistas da casta liberal, advocatícia e burocrático-militarista que são as classes dirigentes nacionais;
Considerando, enfim, a sucessão de eventos imorais previamente arrolados e devidamente comprováveis nos autos de nossa história, vimos por meio desta comunicar que são os mordomos os primitivos causadores e prediletos mantenedores de nossa desigualdade social!
Instaure-se o incompetente processo penal!


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