São Paulo, quinta-feira, 18 de setembro de 2008

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comentário

Artista montou circo de mau gosto e luxúria

MÁRCIA FORTES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Conheço Damien Hirst pessoalmente desde 1993, quando ele participou da sua primeira Bienal de Veneza com a obra "Mother and Child Divided" (vaca e bezerro cortados ao meio em tanques de formol). Na época, eu era jornalista e me lembro da concorrida coletiva de imprensa que ele deu lá. Só se falava dele, do "escândalo" que era a sua interpretação da Madonna. Nessa mesma exposição (o "Aperto 93") havia outros jovens artistas bem talentosos, como um tal de Matthew Barney -além de Gabriel Orozco, John Currin e Maurizio Cattelan. Mas não teve para ninguém, o formol do Damien tinha fundido as células da coletividade e roubado toda a atenção para ele. Desde então, ele tem sido sempre fiel à sua própria conduta e objetivo no "art world": confundir o fazer artístico com marketing pessoal, desafiar os sistemas vigentes e tirar sarro da cara de todo mundo. Dois anos antes, em 1991, ele teve a sua primeira mostra individual no ICA de Londres, quando seu primeiro catálogo foi publicado. É uma ediçãozinha simpática de 2.000 cópias em que já estavam retratados "Spot Paintings", borboletas e remédios, mas ainda era pré-tubarão. Trazia uma entrevista dele à artista Sophie Calle. Só no final você descobria que a entrevista era "fake", porque era o Damien entrevistando a si mesmo com perguntas que ele imaginava que a Sophie faria. Até quando se tratava de uma simples entrevista, ele já chegava pervertendo o sistema. Folheando o conjunto de três catálogos do leilão da Sotheby's, vejo que nada mudou, ele continua igual e, sinceramente, fico feliz por isso. Estranho seria o Damien ficar anestesiado pelo acariciamento de tantos milhões de libras e ser domesticado pelo sistema! Aí sim o jogo deixaria de fazer sentido. Nessas páginas, além das 223 obras produzidas neste ano, vejo o circo que Damien fundou e construiu para si: um desfile de luxúria, mau-gosto, genialidade, fortuna e muito mais. Aqui, como sempre, vejo a fama da obra chegar antes da própria, a bem-sucedida estratégia de marketing que ele aprendeu de seu "pai" Jeff Koons e seu "avô" Andy Warhol, que já chamava seu ateliê de Factory e anunciava que queria pintar como uma máquina, assim como Damien faz hoje na indústria que é seu ateliê.

Estilo cara-de-pau
Lá no começo dos anos 90, nas noitadas de Londres, ele adorava dizer: "I can't wait to get to the point where I can make really shit work and sell it for lots of money" (mal posso esperar para chegar ao ponto de fazer um trabalho muito ruim e vender por muito dinheiro). Ele já chegou a esse ponto há muito tempo, e esse leilão celebra o auge desse mote, com o brilho e a cara-de-pau que fazem seu estilo. O mais incrível é que ele fala coisas assim na lata e todos continuam caindo como patinhos. As obras são uma sucessão de paródias da produção que o levou à fama. Ainda assim estão falando que quem ainda não havia pago fortuna por uma obra dele pagou agora. Prevaleceu a sensação de que comprar uma obra (por pior que fosse) deste leilão era comprar um ticket para a história. Apostei que o leilão ia bombar, mas jamais imaginei que as cifras superariam todas as expectativas no dia seguinte de quedas vertiginosas nas bolsas de valores de todo o mundo. O mais admirável é que o artista joga pesado e joga aberto, apostando todas as suas fichas. Se as vendas tivessem sido fracas, ele teria autodetonado a sua bem-sucedida carreira. Mas Damien conseguiu de novo -implodiu regras vigentes e explodiu especulações. Dessa vez, o "tempero" extra é a anunciação da morte do galerista. Claro que poucos artistas no mundo se beneficiariam com isso, a maioria sofreria fracassos vergonhosos nos leilões. Mas isso me intriga bastante -poder imaginar um mundo onde minha profissão esteja extinta e eu, bem, finalmente livre para me reinventar.

MÁRCIA FORTES é sócia-diretora da galeria Fortes Vilaça.



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