São Paulo, quinta-feira, 18 de setembro de 2008

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NINA HORTA

Que o ingá te proteja!


A mãe sorria, pensando naquelas magricelas que nem nadar no ribeirão sem pé de ingá conseguiam

ALGUÉM VINHA fazer minhas unhas. Eu nem conhecia a manicure, mas estava sem assunto para a crônica e fui me preparando. Agarro a moça que não pode fugir e extraio uma matéria da vida dela, da cidadezinha onde nasceu, das comidas que a mãe fazia.
Essa hoje não me escapa.
Era uma mulata bonita, de uns 27 anos, com três filhos, inteligente, contou de filmes que assistiu, muito simples e articulada. Como a cobra que de repente dá o bote, ataquei.
"Onde você nasceu?" "Osasco." Vi a crônica rolando ladeira abaixo.
"Pensei que era do interior, e você foi nascer bem neste naco da cidade tão bravo e enfumaçado, aqui pertinho..." "Pois é, preferia demais ter nascido na Bahia, em Limeira, para ter casos para contar." "Ora, Osasco também tem casos.
Outro dia fui ao teatro, lá, e de repente começaram a passar uns homens parrudos atrás das bailarinas, a maior esquisitice. Na saída, vi que eram policiais. Tinham roubado toda a caixa do dia." "É que esses assuntos eu detesto.
Quando era pequena, minha mãe morava em Osasco mesmo. E a nossa casa e a da vizinha eram as únicas com quintal grande, terra, barro, árvore de fruta. Quando chove e sinto o cheiro de terra molhada tenho certeza de que estou lá, de tranças, brincando com meu irmão. Quer dizer, brigando." Comentamos esse tipo de gente como nós duas, que nos orientamos mais pelo nariz do que por qualquer outra coisa. Dizia ela que os cheiros a carregavam imediatamente de um lugar e de um tempo para o outro.
Memórias nítidas, irremediavelmente reais. Tal e qual.
Memória de barro escorregadio, pedras, a descida íngreme para o ribeirão, com as primas. Tirávamos a roupa, ficávamos de combinação, (item de vestuário extinto), e as que sabiam nadar mergulhavam. As menores, que já tinham ouvido muita história de gente levada pela correnteza e achada mortinha lá no fim do mundo, tinham medo. É aí que entra o pé de ingá. Crescia alto e caía como um chorão sobre as águas. Quem não soubesse nadar teria que se fiar nos seus galhos, agarrá-los e ficar boiando na corrente pura, escura, cascalhenta, água sempre tem um leve cheiro de peixe, de lambari, de profundezas, de mistérios, de sereias cantadeiras, de boto e de vida.
E enquanto o ingá nos segurava, ninfetas caboclas de combinação, escutávamos o ranger de um carro de boi e a voz forte do homem, "Oi, comadre, vai afogar!! Que o ingá te proteja". E daí eram todas a juntar as combinações nas coxas, a cara avermelhada, o ingá dando o que tinha de dar para agüentar as meninas boiando embaixo d'água.
Chegando em casa, contei para a mãe a catástrofe de ter sido vista nua pelo compadre, o rapaz que me convidara para "madrinha de carregar" da filha! A mãe sorria, pensando naquelas magricelas de combinação, que nem madrinhas de verdade conseguiam ser, que nem nadar no ribeirão sem pé de ingá conseguiam. As pedagogas daquele tempo liam muito Rousseau, cabeças feitas de Emílio. E no dia seguinte, trêmula, de blusa de manga comprida de fustão (o padre não deixava entrar ninguém de manga curta, este era mais para Freud), batizamos o bebê e saímos para a festa.
Além do ingá tão doce, era época de manga, sempre era época de manga em Florestal, ou seria sempre época das férias. E tinha manga de todo jeito, de todo gosto, de todo cheiro, gordas, sumarentas, pequenas deliciosas, sem fio, as normais, que eram só fio, as manchadas de preto, a coquinho, a coração de boi, a Carlota, a Bourbon, nenhuma em vias de se acabar. As mangueiras soturnas, folhas verde-escuras, o chão forrado de limo. E não há mais o que conversar, pois a manicure foi embora cheirando a verniz e creme, e eu fiquei lá, perdida na festa de latas de goiabada.

ninahorta@uol.com.br



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