São Paulo, sábado, 18 de outubro de 2008

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RODAPÉ LITERÁRIO

O sonho da razão


Narrativas de Samuel Beckett criam espaços imaginários como laboratórios da morte individual e coletiva

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"UMA FENOMENOLOGIA da percepção e uma arqueologia do saber aproximam "O Despovoador", distopia que ecoa o inferno dantesco, e "Mal Visto Mal Dito", janela e réquiem para uma velha enclausurada."
A fórmula, que sintetiza essas duas narrativas de Beckett reunidas num único volume, está no prefácio de Fábio de Souza Andrade -intérprete obsessivo (como todo bom leitor) do romancista e dramaturgo irlandês.
A referência a Merleau-Ponty ("Fenomenologia da Percepção") e Michel Foucault ("A Arqueologia do Saber") lança luz sobre um universo de sombra. O sujeito, na obra de beckettiana, tem algo de pré-discursivo, pré-intelectual; e, ao fazer a fenomenologia dessa existência puramente corpórea, que precede a consciência, o autor de "O Inominável" expõe o fosso que existe entre palavras e coisas, linguagem e mundo.
O resultado é a feição particular de suas personagens, marionetes que falam, corpos que parecem desconectados das operações discursivas nas quais estão enclausuradas -mas que na verdade obedecem aos rituais minimalistas de mentes que giram em falso, torturadas pelo alheamento.
A partir de Beckett, toda a ficção anterior parece repousar sobre a superstição de que existe uma relação de continuidade natural, compreensível, entre os objetos, de que a linguagem pode representar algo, mesmo que seja uma paisagem interior (Joyce) ou um sentido apenas intuído (Kafka).
Evidentemente, qualquer instituição social, incluindo a literatura, repousa sobre esse acordo tácito, que estabelece relações lógicas entre seres. Uma das ironias de Beckett foi mostrar como o sonho da razão produz monstros.
"O Despovoador" é a faceta "coletiva" do pesadelo: uma comunidade de homens e mulheres encapsulados num cilindro, revezando-se em posições e tarefas. A "coisificação" do humano por um narrador que descreve, com precisão de laboratorista, a busca em vão de uma fuga vã é uma modalidade totalitária do olhar: institui "convenções de origem obscura que por sua precisão e pela submissão que exigem (...) assemelham-se a leis".
O que poderia ser entendido apenas como metáfora do despovoamento do mundo pela anomia da técnica e suas perversões ideológicas se aprofunda, em "Mal Visto Mal Dito", num espaço já sem conotações políticas: a cena terminal de uma velha numa cabana entre pedras, descrita por uma voz que a contempla do infinito.
Ecos da mitologia céltica (ruínas de Stonehenge) e bíblica (a deposição da cruz) são apropriados por um viés negativo. Beckett recria o rito do fim, da passagem do orgânico para o inorgânico: conviver com o "vestígio de todo esse mal" é nossa lei.

O DESPOVOADOR/MAL VISTO MAL DITO
Autor: Samuel Beckett
Tradução: Eloisa Araújo Ribeiro
Editora: Martins Fontes
Quanto: R$ 27 (106 págs.)



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