São Paulo, sábado, 18 de novembro de 2000

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LIVROS/LANÇAMENTOS
"A CAVERNA"
O mito do cotidiano de Saramago

ADRIANO SCHWARTZ
EDITOR DO MAIS!

José Saramago nunca escondeu o fascínio que sente pela literatura de Fernando Pessoa, Jorge Luis Borges e Franz Kafka. Os dois primeiros foram, ao longo de sua obra romanesca, discutidos e absorvidos intensamente. O último tem sido associado com frequência a suposta nova fase do escritor, que começou com o "Ensaio sobre a Cegueira" e conta ainda com "Todos os Nomes" e o recém-lançado "A Caverna".
Ainda que o autor tcheco seja uma presença forte em todos esses livros, no mais recente ele é fundamental, muito mais relevante do que as superficiais similaridades entre o enredo e o mito da caverna, de Platão, ao qual o título e a condução básica do texto remetem. Pode-se dizer que, de certa maneira, toda a narrativa é uma reelaboração da última frase de Josef K., o protagonista de "O Processo", dita em seus momentos finais: "Como um cão".
O tom, no entanto, é menor, singelo, inverso até, quase como se Saramago estivesse se pondo no papel de um representante da micro-história, da história das mentalidades, disposto a centrar seu foco em um aspecto escondido, ínfimo, de uma epopéia já escancarada em toda a sua grandiosa estrutura por um exímio pesquisador. Que tal hipotética epopéia seja, no limite, um instantâneo caprichado do que se convencionou chamar de a "condição humana" é, de fato, um detalhe.
Por isso, para apreciar esse belo romance é preciso esquecer tudo o que se costuma dizer rotineiramente sobre o autor, aliás esquecer também tudo o que o autor costuma dizer nas infinitas entrevistas que concede pacientemente a cada novo lançamento. As simbologias baratas são facilmente apreensíveis: a opressão de um sistema capitalista centralizador, a burocratização das relações humanas, a destruição das tradições pela evolução devoradora da tecnologia etc. etc. Todas elas estão potencialmente lá, em "A Caverna", ansiosas para serem lembradas e, como simbologias baratas que são, prontas para serem esquecidas.
O enredo do romance concentra-se em um breve período de tempo -algumas semanas- na vida de um velho oleiro, Cipriano Algor, e alguns seres próximos a ele: a filha, o marido dela, uma vizinha e o cachorro Achado.
Ao contrário dos livros mais recentes do autor, nesse o andamento é lento. A obra leva o tempo necessário para, por exemplo, fornecer detalhadas descrições do trabalho com o barro para a feitura primeiramente de utensílios domésticos e, em seguida, de bonecos artesanais.
Por mais de 300 páginas, pequenos conflitos pessoais e profissionais e fugazes lampejos de iluminação e esperança se acumulam, sempre pontuados pelo, às vezes excessivo, às vezes absolutamente pertinente, narrador palpiteiro, figura indispensável à configuração romanesca estabelecida há muitos anos por Saramago. Apenas nos trechos finais -quando surge a "caverna" que dá título ao livro- a narrativa se acelera, para culminar em uma das conclusões mais bem resolvidas da obra do autor.
Para terminar, vale citar um aspecto lateral e fascinante do livro. Trata-se de um quase manual disperso de psicologia e comportamento canino. Aprofunda-se o vínculo, impõe-se o paralelo: o cão, como um homem; o homem, de novo, como um cão.


A Caverna
     Autor: José Saramago Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 31 (352 págs.)




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