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LIVROS/LANÇAMENTOS
"A CAVERNA"
O mito do cotidiano de Saramago
ADRIANO SCHWARTZ
EDITOR DO MAIS!
José Saramago nunca escondeu o fascínio que sente pela literatura de Fernando Pessoa, Jorge Luis Borges e Franz Kafka. Os
dois primeiros foram, ao longo de
sua obra romanesca, discutidos e
absorvidos intensamente. O último tem sido associado com frequência a suposta nova fase do escritor, que começou com o "Ensaio sobre a Cegueira" e conta
ainda com "Todos os Nomes" e o
recém-lançado "A Caverna".
Ainda que o autor tcheco seja
uma presença forte em todos esses livros, no mais recente ele é
fundamental, muito mais relevante do que as superficiais similaridades entre o enredo e o mito
da caverna, de Platão, ao qual o título e a condução básica do texto
remetem. Pode-se dizer que, de
certa maneira, toda a narrativa é
uma reelaboração da última frase
de Josef K., o protagonista de "O
Processo", dita em seus momentos finais: "Como um cão".
O tom, no entanto, é menor,
singelo, inverso até, quase como
se Saramago estivesse se pondo
no papel de um representante da
micro-história, da história das
mentalidades, disposto a centrar
seu foco em um aspecto escondido, ínfimo, de uma epopéia já escancarada em toda a sua grandiosa estrutura por um exímio pesquisador. Que tal hipotética epopéia seja, no limite, um instantâneo caprichado do que se convencionou chamar de a "condição
humana" é, de fato, um detalhe.
Por isso, para apreciar esse belo
romance é preciso esquecer tudo
o que se costuma dizer rotineiramente sobre o autor, aliás esquecer também tudo o que o autor
costuma dizer nas infinitas entrevistas que concede pacientemente
a cada novo lançamento. As simbologias baratas são facilmente
apreensíveis: a opressão de um
sistema capitalista centralizador,
a burocratização das relações humanas, a destruição das tradições
pela evolução devoradora da tecnologia etc. etc. Todas elas estão
potencialmente lá, em "A Caverna", ansiosas para serem lembradas e, como simbologias baratas
que são, prontas para serem esquecidas.
O enredo do romance concentra-se em um breve período de
tempo -algumas semanas- na
vida de um velho oleiro, Cipriano
Algor, e alguns seres próximos a
ele: a filha, o marido dela, uma vizinha e o cachorro Achado.
Ao contrário dos livros mais recentes do autor, nesse o andamento é lento. A obra leva o tempo necessário para, por exemplo,
fornecer detalhadas descrições do
trabalho com o barro para a feitura primeiramente de utensílios
domésticos e, em seguida, de bonecos artesanais.
Por mais de 300 páginas, pequenos conflitos pessoais e profissionais e fugazes lampejos de iluminação e esperança se acumulam,
sempre pontuados pelo, às vezes
excessivo, às vezes absolutamente
pertinente, narrador palpiteiro,
figura indispensável à configuração romanesca estabelecida há
muitos anos por Saramago. Apenas nos trechos finais -quando
surge a "caverna" que dá título ao
livro- a narrativa se acelera, para
culminar em uma das conclusões
mais bem resolvidas da obra do
autor.
Para terminar, vale citar um aspecto lateral e fascinante do livro.
Trata-se de um quase manual disperso de psicologia e comportamento canino. Aprofunda-se o
vínculo, impõe-se o paralelo: o
cão, como um homem; o homem,
de novo, como um cão.
A Caverna
Autor: José Saramago
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 31 (352 págs.)
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