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RESENHA DA SEMANA
O selvagem literário
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
"Sexta Feira" , referência
ao personagem criado
por Daniel Defoe em "Robinson
Crusoe", não é só um bom título
para uma revista de antropologia, artes e humanidades. É um
verdadeiro achado.
Sexta Feira é o selvagem literário, o selvagem criado pela imaginação, e tomar seu nome emprestado para batizar uma revista que pretende fazer dialogar,
em belas edições monotemáticas, antropologia e arte sugere
uma iniciativa que, pelo seu
simpático anacronismo diante
da situação atual da cultura, torna-se das mais oportunas.
"Sexta Feira" intercala ensaios
com poemas e imagens de artistas. Um dos motes da revista,
como dá a entender o texto de
apresentação do número 5 (primavera 2000), dedicado ao tempo, é "romper com a idéia do registro do real". Ou seja, tomar
emprestados à experiência da
"crítica ao olhar etnocêntrico,
clássica em nossa disciplina",
como define o antropólogo
Márcio Silva em seu ensaio sobre o tempo entre os índios enawene nawe, os instrumentos que
permitam, por analogia, outras
percepções da cultura e das artes.
O número 5 de "Sexta Feira",
em sintonia com a física contemporânea, relativiza a noção
ocidental e predominante de
tempo linear e progressivo, em
textos que fazem referências a
outras percepções do tempo,
entre índios, loucos e detentos,
assim como na literatura. Questiona também a política por trás
de alguns efeitos dessa concepção linear, como a comemoração dos 500 anos. Mas, para
além da crítica da cultura e do
relativismo típicos de um olhar
formado pela antropologia,
"Sexta Feira 5" levanta pelo menos uma questão fundamental
para as artes hoje.
A crença num real absoluto e
único, que as artes deveriam espelhar, é uma ilusão recorrente
que, apesar de resistências pontuais, volta e meia se impõe à
cultura ocidental. Pode estar
tanto por trás dos preceitos do
realismo socialista como na noção, hoje crescente no Brasil, de
que quanto mais popular ou
"dura" for a manifestação estética, mais autêntica ela será, pois a
arte é um "espelho da realidade", ou ainda no culto e na inversão, que os americanos tanto
promovem como exportam, do
mercado como parâmetro máximo da qualidade artística.
A sedução exercida sobre o leitor por uma literatura que lhe
parece estar contando uma
"verdade", por exemplo, e que
se vende como relato de um fato
real ou experiência vivida e em
geral extraordinária (biografias
e autobiografias, romances históricos, livros de viagens e de
aventuras etc.), não é novidade.
Mas o mercado, com a aquiescência feliz da mídia, soube se
aproveitar dessa tendência para
declarar ultrapassadas as fronteiras entre jornalismo e literatura. De tal modo que, com exceção de alguns best sellers que
ainda servem como a parte do
escapismo e do sonho, a ficção
(a de qualidade, pelo menos)
corre o risco de se transformar
em breve em gênero de museu.
Não seria de admirar se no futuro, e dentro de uma perspectiva
otimista, a redescoberta da imaginação como fundamento da
criação literária viesse a provocar uma nova revolução cultural.
"Para Henri Bergson, nossa
percepção habitual só mostra do
real aquilo que nos interessa para agir sobre ele. (...) A condição
da arte é o relaxamento da tensão e do esforço desenvolvido
no homem para que ele transforme o real de acordo com suas
necessidades práticas. É por isso
que a imaginação é um órgão do
conhecimento: na fusão dela
com a percepção, abre-se a passagem ao incondicionado, ao
inexprimível, porque aí é possível ver, escutar e pensar sem se
submeter às exigências da
ação", escreve o cineasta Daniel
Augusto em seu texto sobre
Proust e a adaptação cinematográfica da "Recherche" por
Raoul Ruiz.
"Sexta Feira 5" termina com
uma parábola: em 1981, por ocasião das comemorações dos 500
anos de Lausanne, na Suíça, o cineasta Jean-Luc Godard foi convidado a fazer um filme "sobre a
cidade". Preferiu fazer um filme
"sobre o sobre". Tomou o partido da imaginação e da ficção
contra a crença no poder absoluto do documentário: a ficção
"não fala sobre algo", sobre um
real que a precede, mas é o desafio e a possibilidade libertária de
criá-lo.
Sexta Feira 5
Editora: Hedra (tel. 0/xx/11/3897-8304; www.hedra.com.br)
Quanto: R$ 19 (208 págs.)
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