São Paulo, sábado, 18 de novembro de 2000

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RESENHA DA SEMANA
O selvagem literário

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

"Sexta Feira" , referência ao personagem criado por Daniel Defoe em "Robinson Crusoe", não é só um bom título para uma revista de antropologia, artes e humanidades. É um verdadeiro achado.
Sexta Feira é o selvagem literário, o selvagem criado pela imaginação, e tomar seu nome emprestado para batizar uma revista que pretende fazer dialogar, em belas edições monotemáticas, antropologia e arte sugere uma iniciativa que, pelo seu simpático anacronismo diante da situação atual da cultura, torna-se das mais oportunas.
"Sexta Feira" intercala ensaios com poemas e imagens de artistas. Um dos motes da revista, como dá a entender o texto de apresentação do número 5 (primavera 2000), dedicado ao tempo, é "romper com a idéia do registro do real". Ou seja, tomar emprestados à experiência da "crítica ao olhar etnocêntrico, clássica em nossa disciplina", como define o antropólogo Márcio Silva em seu ensaio sobre o tempo entre os índios enawene nawe, os instrumentos que permitam, por analogia, outras percepções da cultura e das artes.
O número 5 de "Sexta Feira", em sintonia com a física contemporânea, relativiza a noção ocidental e predominante de tempo linear e progressivo, em textos que fazem referências a outras percepções do tempo, entre índios, loucos e detentos, assim como na literatura. Questiona também a política por trás de alguns efeitos dessa concepção linear, como a comemoração dos 500 anos. Mas, para além da crítica da cultura e do relativismo típicos de um olhar formado pela antropologia, "Sexta Feira 5" levanta pelo menos uma questão fundamental para as artes hoje.
A crença num real absoluto e único, que as artes deveriam espelhar, é uma ilusão recorrente que, apesar de resistências pontuais, volta e meia se impõe à cultura ocidental. Pode estar tanto por trás dos preceitos do realismo socialista como na noção, hoje crescente no Brasil, de que quanto mais popular ou "dura" for a manifestação estética, mais autêntica ela será, pois a arte é um "espelho da realidade", ou ainda no culto e na inversão, que os americanos tanto promovem como exportam, do mercado como parâmetro máximo da qualidade artística.
A sedução exercida sobre o leitor por uma literatura que lhe parece estar contando uma "verdade", por exemplo, e que se vende como relato de um fato real ou experiência vivida e em geral extraordinária (biografias e autobiografias, romances históricos, livros de viagens e de aventuras etc.), não é novidade.
Mas o mercado, com a aquiescência feliz da mídia, soube se aproveitar dessa tendência para declarar ultrapassadas as fronteiras entre jornalismo e literatura. De tal modo que, com exceção de alguns best sellers que ainda servem como a parte do escapismo e do sonho, a ficção (a de qualidade, pelo menos) corre o risco de se transformar em breve em gênero de museu. Não seria de admirar se no futuro, e dentro de uma perspectiva otimista, a redescoberta da imaginação como fundamento da criação literária viesse a provocar uma nova revolução cultural.
"Para Henri Bergson, nossa percepção habitual só mostra do real aquilo que nos interessa para agir sobre ele. (...) A condição da arte é o relaxamento da tensão e do esforço desenvolvido no homem para que ele transforme o real de acordo com suas necessidades práticas. É por isso que a imaginação é um órgão do conhecimento: na fusão dela com a percepção, abre-se a passagem ao incondicionado, ao inexprimível, porque aí é possível ver, escutar e pensar sem se submeter às exigências da ação", escreve o cineasta Daniel Augusto em seu texto sobre Proust e a adaptação cinematográfica da "Recherche" por Raoul Ruiz.
"Sexta Feira 5" termina com uma parábola: em 1981, por ocasião das comemorações dos 500 anos de Lausanne, na Suíça, o cineasta Jean-Luc Godard foi convidado a fazer um filme "sobre a cidade". Preferiu fazer um filme "sobre o sobre". Tomou o partido da imaginação e da ficção contra a crença no poder absoluto do documentário: a ficção "não fala sobre algo", sobre um real que a precede, mas é o desafio e a possibilidade libertária de criá-lo.


Sexta Feira 5
    Editora: Hedra (tel. 0/xx/11/3897-8304; www.hedra.com.br) Quanto: R$ 19 (208 págs.)





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