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"CINEMANCIA"
Bressane transfunde cinema, pensamento e poesia
JOSÉ GERALDO COUTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
Tradução é palavra-chave
para entender tanto o cinema
de Julio Bressane como sua reflexão ensaística, sobretudo na fase
mais recente de um e outra, ambos marcados pelo influxo fecundo da figura de são Jerônimo.
Mesmo antes de dedicar um
longa-metragem ao santo, Bressane já era fascinado por suas hercúleas proezas: a tradução da Bíblia do hebraico para o latim, a
ponte entre o cristianismo e a cultura da Antiguidade clássica.
Pontes desse tipo -entre línguas, culturas, linguagens e meios
de expressão- formam a própria
substância dos ensaios de Bressane reunidos em "Cinemancia".
Dois dos textos, por exemplo,
debruçam-se sobre transposições
("transcriações", talvez ele preferisse dizer) de obras literárias para
o cinema. "Brás Cubas" trata de
sua própria versão cinematográfica do romance de Machado de
Assis. "Vida Luz Deserto" aborda
o filme "Vidas Secas", de Nelson
Pereira dos Santos, inspirado no
clássico de Graciliano Ramos.
Por distração ou idiossincrasia,
Bressane curiosamente não nomeia em nenhum momento o diretor de "Vidas Secas" em sua bela leitura do filme, iluminada pela
significação do deserto na tradição cristã.
Claro que o onipresente são Jerônimo tem um papel importante
neste e em quase todos os outros
ensaios, além de ser o assunto
central do primeiro e mais alentado de todos, "Fotodrama: Grão de
Luz no Deserto".
Em "Brás Cubas", o cineasta-crítico, mais do que explicar as
ousadas soluções de linguagem
de que lançou mão para transformar em filme o romance de Machado, procura mostrar que o livro já era cinema "avant la lettre",
por suas técnicas narrativas, tipográficas e de montagem.
Em "O Homem dos Olhos Doces" Bressane assume uma posição quase humilde para dar vez e
voz a um dos grandes cineastas do
mundo, Robert Bresson. Boa parte do ensaio compõe-se da transcrição de depoimentos e escritos
do cineasta francês.
E Bressane vai estendendo suas
pontes: em "O Doutor Inglês e o
Paciente Argentino" aborda a influência de Thomas Browne
(1605-82) sobre Borges; em
"Emerson em Movimento" trata
das marcas do poeta-pensador
norte-americano Ralph Waldo
Emerson (1803-82) em Nietszche
e na sensibilidade moderna.
Este último texto contém um
dos lances mais brilhantes do livro, o lugar em que ele passa da
erudição à invenção: Bressane toma o poema "Brahma", de Emerson, e "traduz" cada um de seus
quatro quartetos em fragmentos
de cinema: "O Lírio Partido", de
Griffith; "Que Viva México", de
Eisenstein; "O Ano Passado em
Marienbad", de Resnais; e "Je
Vous Salue Marie", de Godard.
Mas é no pequeno ensaio "O
Brasil Encoberto", sobre as inscrições rupestres encontradas há
mais de um século no Nordeste
por Tristão de Alencar Araripe,
que Bressane explicita, numa dicção que lembra a de um colérico
Vieira, sua visão do país:
"Aqui vejo eu: como é grotesco,
fero e temeroso o esforço nacional
em macaquear as sociedades ricas
de consumo. Toda uma porcariada que em imagens e sons enfiam,
corpo adentro, em uma população despreparada, uma sociedade
sáfara que tem um pé na antiguidade e outro no... abismo! População encoberta que poderia, se
tratada de maneira decente, descobrir, camada a camada, a valiosa acepção do sinal, que trespassa,
fio a fio, a textura de seu Signo."
Amém.
Cinemancia
Autor: Julio Bressane
Editora: Imago
Quanto: R$ 13 (99 págs.)
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