São Paulo, sábado, 18 de novembro de 2000

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"CINEMANCIA"
Bressane transfunde cinema, pensamento e poesia

JOSÉ GERALDO COUTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Tradução é palavra-chave para entender tanto o cinema de Julio Bressane como sua reflexão ensaística, sobretudo na fase mais recente de um e outra, ambos marcados pelo influxo fecundo da figura de são Jerônimo.
Mesmo antes de dedicar um longa-metragem ao santo, Bressane já era fascinado por suas hercúleas proezas: a tradução da Bíblia do hebraico para o latim, a ponte entre o cristianismo e a cultura da Antiguidade clássica.
Pontes desse tipo -entre línguas, culturas, linguagens e meios de expressão- formam a própria substância dos ensaios de Bressane reunidos em "Cinemancia".
Dois dos textos, por exemplo, debruçam-se sobre transposições ("transcriações", talvez ele preferisse dizer) de obras literárias para o cinema. "Brás Cubas" trata de sua própria versão cinematográfica do romance de Machado de Assis. "Vida Luz Deserto" aborda o filme "Vidas Secas", de Nelson Pereira dos Santos, inspirado no clássico de Graciliano Ramos.
Por distração ou idiossincrasia, Bressane curiosamente não nomeia em nenhum momento o diretor de "Vidas Secas" em sua bela leitura do filme, iluminada pela significação do deserto na tradição cristã.
Claro que o onipresente são Jerônimo tem um papel importante neste e em quase todos os outros ensaios, além de ser o assunto central do primeiro e mais alentado de todos, "Fotodrama: Grão de Luz no Deserto".
Em "Brás Cubas", o cineasta-crítico, mais do que explicar as ousadas soluções de linguagem de que lançou mão para transformar em filme o romance de Machado, procura mostrar que o livro já era cinema "avant la lettre", por suas técnicas narrativas, tipográficas e de montagem.
Em "O Homem dos Olhos Doces" Bressane assume uma posição quase humilde para dar vez e voz a um dos grandes cineastas do mundo, Robert Bresson. Boa parte do ensaio compõe-se da transcrição de depoimentos e escritos do cineasta francês.
E Bressane vai estendendo suas pontes: em "O Doutor Inglês e o Paciente Argentino" aborda a influência de Thomas Browne (1605-82) sobre Borges; em "Emerson em Movimento" trata das marcas do poeta-pensador norte-americano Ralph Waldo Emerson (1803-82) em Nietszche e na sensibilidade moderna.
Este último texto contém um dos lances mais brilhantes do livro, o lugar em que ele passa da erudição à invenção: Bressane toma o poema "Brahma", de Emerson, e "traduz" cada um de seus quatro quartetos em fragmentos de cinema: "O Lírio Partido", de Griffith; "Que Viva México", de Eisenstein; "O Ano Passado em Marienbad", de Resnais; e "Je Vous Salue Marie", de Godard.
Mas é no pequeno ensaio "O Brasil Encoberto", sobre as inscrições rupestres encontradas há mais de um século no Nordeste por Tristão de Alencar Araripe, que Bressane explicita, numa dicção que lembra a de um colérico Vieira, sua visão do país:
"Aqui vejo eu: como é grotesco, fero e temeroso o esforço nacional em macaquear as sociedades ricas de consumo. Toda uma porcariada que em imagens e sons enfiam, corpo adentro, em uma população despreparada, uma sociedade sáfara que tem um pé na antiguidade e outro no... abismo! População encoberta que poderia, se tratada de maneira decente, descobrir, camada a camada, a valiosa acepção do sinal, que trespassa, fio a fio, a textura de seu Signo." Amém.


Cinemancia
    Autor: Julio Bressane Editora: Imago Quanto: R$ 13 (99 págs.)




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