São Paulo, sexta-feira, 18 de novembro de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

O alfinete de ouro de Jocasta

Apesar da avacalhação que Freud promoveu contra ele, Édipo continua sendo um dos personagens mais importantes e fascinantes da literatura universal. Dentro do simplismo filosófico que o marcou, o pai da psicanálise extraiu do rei de Tebas o detalhe mais insignificante da tragédia de Sófocles. Ao contrário do que Freud imaginava e fez uma multidão de seguidores imaginar, Édipo não amava a mãe, muito menos a desejava, não possuía nada daquele complexo a que deu o nome. A verdade é simples: Édipo não tinha complexo de Édipo.
Casou com a mãe, é certo, com ela teve os filhos que afinal seriam também seus irmãos. O drama edipiano não foi causado pela fixação materna, que nem era fixação e muito menos foi o núcleo de sua desventura. Basta uma repassada atenta no original para sentir que a tragédia foi provocada pela busca do assassino de seu pai, Laio. De tal forma a busca foi minuciosa e inquietante, que "Édipo Rei" ficou sendo o primeiro romance policial da história, antecedendo em séculos os Conan Doyles e Simenons que surgiriam depois.
Mais facilmente o príncipe Hamlet, que ficou simbolizando a dúvida, poderia assumir o complexo que Freud erradamente atribuiu a Édipo. Hamlet queria vingar a morte do pai, que lhe aparecera entre as sombras do castelo de Elsinore, praticamente pedindo a vingança de sua morte. Shakespeare também criou um recurso que se banalizou na ficção policial, quando promoveu com atores profissionais a encenação do crime diante dos criminosos e com isso, deu a Hamlet a certeza de que o pai fora realmente assassinado pelo padrasto e pela rainha, sua mãe. Um recurso até hoje usado não apenas na ficção mas na realidade do dia-a-dia das delegacias e tribunais de todo o mundo.
No caso de Édipo, antes de tudo está implícito o sentimento de justiça do rei de Tebas: desde que houve um crime, o criminoso terá de ser punido, na base do "doa a quem doer", aliás, muito citada, mas pouco executada nos dias que atualmente atravessamos aqui no Brasil. Evidente que nesta sede de justiça, Édipo estava longe de imaginar que seria, ele próprio, o criminoso. Diante dos testemunhos, sem necessidade de CPIs, de apelos ao Supremo e notinhas implantadas na mídia (que naquele tempo, se existia, não cheirava nem fedia), Édipo chegou à verdade.
Filho de Laio e Jocasta, que reinavam em Tebas, mas enjeitado, entregue a um casal de pastores que vivia longe da cidade, num incidente de estrada sem qualquer importância, Édipo mataria Laio sem saber que estava matando o seu pai -e muito menos ambicionando sucedê-lo na cama e no trono. O casamento com a mãe foi uma decorrência: sendo marido de uma rainha, também seria rei. Em nenhum momento ele desejou antecipadamente a mãe e o trono. Acima de qualquer ambição (ou complexo) lá estava o Destino -esse sim, o tema principal da peça, invocado de diversas maneiras pelo coro que no teatro grego comenta a ação desenrolada no palco, e obviamente na própria vida que o teatro pretende representar.
Antes de ser um símbolo do complexo que erradamente tomou o seu nome, Édipo encarna a tragédia do próprio homem: por honesto e sensato que seja, ele é um joguete do Destino, em permanente "stand by" para a tragédia, desde o seu nascimento até a morte. Daí o comentário final que Sófocles colocou no coro que encerra a peça: "Sendo assim, até o dia fatal de cerrarmos os olhos não devemos dizer que um mortal foi feliz".
Bem verdade que Édipo, em sendo honesto e justo, cerrou os olhos antes mesmo do "dia fatal" que chega mais cedo ou mais tarde para qualquer homem. Ele próprio varou os olhos com o alfinete de ouro de Jocasta para não ver a tragédia que desencadeou nos outros e, sobretudo, nele mesmo.
Aí sim, se Freud fosse realmente, além de médico, um filósofo que se pudesse levar a sério, estaria a justificação para um tipo de complexo muito mais complicado do que o de Édipo: o alfinete de ouro de Jocasta (em algumas traduções, o alfinete é substituído por "broches de ouro", que Édipo arranca do cadáver da mãe-mulher).
Este alfinete de ouro seria a explicação das sucessivas autoflagelações que praticamos contra nós mesmos, nem todas justificáveis, mas a maioria delas de alguma forma merecida. Ao lado de Hamlet olhando a caveira de Yorik, a maior logomarca do teatro universal -e sem dúvida a mais dramática- é a patética figura de Édipo, olhos vazados, o rosto ensangüentado, conduzido por Creonte, irmão de Jocasta, pedindo que o expulse de Tebas e o leve aos vales do Citeron, onde fora criado por pastores, pais adotivos de um príncipe enjeitado e de um rei desgraçado.


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