|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
O alfinete de ouro de Jocasta
Apesar da avacalhação que
Freud promoveu contra ele,
Édipo continua sendo um dos personagens mais importantes e fascinantes da literatura universal.
Dentro do simplismo filosófico
que o marcou, o pai da psicanálise
extraiu do rei de Tebas o detalhe
mais insignificante da tragédia de
Sófocles. Ao contrário do que
Freud imaginava e fez uma multidão de seguidores imaginar, Édipo não amava a mãe, muito menos a desejava, não possuía nada
daquele complexo a que deu o nome. A verdade é simples: Édipo
não tinha complexo de Édipo.
Casou com a mãe, é certo, com
ela teve os filhos que afinal seriam
também seus irmãos. O drama
edipiano não foi causado pela fixação materna, que nem era fixação e muito menos foi o núcleo de
sua desventura. Basta uma repassada atenta no original para sentir que a tragédia foi provocada
pela busca do assassino de seu pai,
Laio. De tal forma a busca foi minuciosa e inquietante, que "Édipo
Rei" ficou sendo o primeiro romance policial da história, antecedendo em séculos os Conan Doyles
e Simenons que surgiriam depois.
Mais facilmente o príncipe
Hamlet, que ficou simbolizando a
dúvida, poderia assumir o complexo que Freud erradamente
atribuiu a Édipo. Hamlet queria
vingar a morte do pai, que lhe
aparecera entre as sombras do
castelo de Elsinore, praticamente
pedindo a vingança de sua morte.
Shakespeare também criou um recurso que se banalizou na ficção
policial, quando promoveu com
atores profissionais a encenação
do crime diante dos criminosos e
com isso, deu a Hamlet a certeza
de que o pai fora realmente assassinado pelo padrasto e pela rainha, sua mãe. Um recurso até hoje
usado não apenas na ficção mas
na realidade do dia-a-dia das delegacias e tribunais de todo o
mundo.
No caso de Édipo, antes de tudo
está implícito o sentimento de justiça do rei de Tebas: desde que
houve um crime, o criminoso terá
de ser punido, na base do "doa a
quem doer", aliás, muito citada,
mas pouco executada nos dias que
atualmente atravessamos aqui no
Brasil. Evidente que nesta sede de
justiça, Édipo estava longe de
imaginar que seria, ele próprio, o
criminoso. Diante dos testemunhos, sem necessidade de CPIs, de
apelos ao Supremo e notinhas implantadas na mídia (que naquele
tempo, se existia, não cheirava
nem fedia), Édipo chegou à verdade.
Filho de Laio e Jocasta, que reinavam em Tebas, mas enjeitado,
entregue a um casal de pastores
que vivia longe da cidade, num incidente de estrada sem qualquer
importância, Édipo mataria Laio
sem saber que estava matando o
seu pai -e muito menos ambicionando sucedê-lo na cama e no trono. O casamento com a mãe foi
uma decorrência: sendo marido
de uma rainha, também seria rei.
Em nenhum momento ele desejou
antecipadamente a mãe e o trono.
Acima de qualquer ambição (ou
complexo) lá estava o Destino
-esse sim, o tema principal da
peça, invocado de diversas maneiras pelo coro que no teatro grego
comenta a ação desenrolada no
palco, e obviamente na própria vida que o teatro pretende representar.
Antes de ser um símbolo do
complexo que erradamente tomou o seu nome, Édipo encarna a
tragédia do próprio homem: por
honesto e sensato que seja, ele é
um joguete do Destino, em permanente "stand by" para a tragédia,
desde o seu nascimento até a morte. Daí o comentário final que Sófocles colocou no coro que encerra
a peça: "Sendo assim, até o dia fatal de cerrarmos os olhos não devemos dizer que um mortal foi feliz".
Bem verdade que Édipo, em sendo honesto e justo, cerrou os olhos
antes mesmo do "dia fatal" que
chega mais cedo ou mais tarde
para qualquer homem. Ele próprio varou os olhos com o alfinete
de ouro de Jocasta para não ver a
tragédia que desencadeou nos outros e, sobretudo, nele mesmo.
Aí sim, se Freud fosse realmente, além de médico, um filósofo
que se pudesse levar a sério, estaria a justificação para um tipo de
complexo muito mais complicado
do que o de Édipo: o alfinete de
ouro de Jocasta (em algumas traduções, o alfinete é substituído
por "broches de ouro", que Édipo
arranca do cadáver da mãe-mulher).
Este alfinete de ouro seria a explicação das sucessivas autoflagelações que praticamos contra nós
mesmos, nem todas justificáveis,
mas a maioria delas de alguma
forma merecida. Ao lado de
Hamlet olhando a caveira de Yorik, a maior logomarca do teatro
universal -e sem dúvida a mais
dramática- é a patética figura
de Édipo, olhos vazados, o rosto
ensangüentado, conduzido por
Creonte, irmão de Jocasta, pedindo que o expulse de Tebas e o leve
aos vales do Citeron, onde fora
criado por pastores, pais adotivos
de um príncipe enjeitado e de um
rei desgraçado.
Texto Anterior: Música: "Soul Deep" revela alma da música negra Próximo Texto: Panorâmica - Patrimônio: Túmulo de Brecht é profanado em Berlim Índice
|