São Paulo, terça-feira, 18 de novembro de 2008 |
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JOÃO PEREIRA COUTINHO George Bush não existe
EU SOU UM MASOQUISTA . De vez em quando, entro em certas salas de cinema com a certeza absoluta de que irei sofrer horrores. E sofro. Mas sofro com um sorriso nos lábios. Serei normal? Oliver Stone é um caso. Nunca, em toda a minha vida, assisti a um filme de Oliver Stone que não fosse medíocre e desonesto. Mas, ano após ano, não desisto: compro o bilhete, entro na sala e sofro, sofro, sofro. Esse ano, foi "W.", o filme que Stone preparou para se despedir de George W. Bush. E que tem Stone para nos dizer sobre o Belzebu? Usando metade do cérebro, Oliver Stone evita o clichê sacramental: apresentar Bush como um pobre ignorante do Texas que pensa e age como um símio. Para desânimo de milhões de idiotas do mundo inteiro, que se sentem estupidamente inteligentes porque acreditam que Bush é estupidamente analfabeto, Stone não cai nessa tentação. Mas não consegue evitar outra: espalhar a sombra de Bush (pai) sobre Bush (filho). Os mandatos de Bush são reduzidos a um drama freudiano em que George W. Bush apenas pretende o amor de seu pai homônimo. A invasão do Iraque, por exemplo, não é o resultado de um pensamento estratégico da administração americana; não é baseada em informação, errada ou parcelar, dos serviços secretos; e jamais é percepcionada como punição pelo fato de Saddam Hussein violar as resoluções da ONU. Caçar Saddam é mera vingança: o carniceiro de Bagdá tentara matar Bush (pai). O filho, no papel de Rambo, pretende agora vingar o pai e ser finalmente reconhecido por ele. O Bush de Stone não inspira ódio; inspira pena. Uma amiga minha, feroz anti-bushista, terminou o filme com vontade de abraçar o presidente. O filme de Oliver Stone tem uma moral: os anos de Bush ainda não são pensáveis racionalmente. São tema para ignorâncias várias que disputam uma versão do presidente sem reconhecerem a complexidade, e mesmo a ambigüidade, que existe em qualquer estadista. Para uns, Bush é a encarnação do demônio. Para outros, o presidente certo em tempos de guerra incertos. Para outros ainda, um pobre de espírito e um ignorante sem perdão. Mas o retrato, a poucos dias do fim, não autoriza nenhuma dessas versões. E o tempo acabará por fazer com Bush o que fez igualmente com Truman ou mesmo Nixon: conceder-lhe um lugar, alguns méritos e alguns deméritos. Comecemos pelo Iraque. Um erro monstruoso, que alimentou Guantánamo, os escândalos de Abu Ghraib e a emergência do Irã como potência regional a caminho da bomba? Provavelmente, sim. Mas a invasão do Iraque, por outro lado, terminou com o reinado de um dos maiores déspotas da história moderna e um patrocinador reconhecido do terrorismo do Oriente Médio. E se a guerra iraquiana parecia perdida há quatro anos, é hoje consensual que o aumento de homens no terreno pacificou o país e pode produzir uma democracia funcional. Não é coisa pouca. Como não é coisa pouca o fato de os Estados Unidos não terem sofrido outro 11 de setembro. Isso fez-se com o sacrifício de algumas liberdades civis? Também é verdade, e o próximo presidente deverá reequilibrar a velha equação entre segurança nacional e liberdade individual. Mas Bush entendeu, depois do 11 de setembro, que era necessário desacreditar as ideologias islamitas a que alguns países davam abrigo, como a Arábia Saudita e o Paquistão, hoje irreconhecíveis. E ainda está por escrever a história completa dos operacionais da Al Qaeda que as forças americanas eliminaram. A Al Qaeda de 2008 é uma sombra da Al Qaeda triunfal de 2001. O que resta? Resta um déficit gigantesco, a que a crise econômica e financeira dá uma expressão dramática. Inegável. Mas resta também uma ajuda humanitária ao flagelado continente africano sem paralelo na história dos Estados Unidos. O combate à AIDS, por exemplo, contou com US$ 15 bilhões; contra a tuberculose e a malária, com 48 bilhões. E perdoou-se a dívida externa a 19 países africanos, qualquer coisa como US$ 34 bilhões. Estes números não têm comparação com qualquer outro presidente americano, Bill Clinton incluso. Na hora do adeus, África já sente saudades de Bush. E o mundo? O mundo discute se Bush foi um herói, um vilão, um idiota. Ou, como Oliver Stone, um Édipo invertido, disposto a ganhar o amor do pai pela força das armas contra Saddam. Cautela, gente: Bush não existe como caricatura. E pensar com metade do cérebro não é coisa de pessoas racionais. jpcoutinho@folha.com.br Texto Anterior: Festival de Brasília vê país "exuberante" Próximo Texto: Ciclo apresenta Murnau além do expressionismo Índice |
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