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Ícones ambíguos servem de espelho
DA REDAÇÃO
Nos romances de Hanif Kureishi, Londres sempre é protagonista. Surge tanto como desafio para
os imigrantes como espaço ao
mesmo tempo claustrofóbico e libertador para os ingleses. "Quando era jovem, a cidade me atraía,
era um lugar excitante, sexual e
intelectualmente. Hoje, vejo-a de
maneira mais tranquila, mas nossa relação ainda é intensa. É impossível dissociá-la dos meus textos", diz o escritor.
De sua casa, no bairro de Hammersmith, Hanif Kureishi concedeu a seguinte entrevista à Folha,
por telefone.
(SC)
Folha - Você diria que "O Dom de
Gabriel" pode ser considerado uma
continuação de "Intimidade"?
Hanif Kureishi - Sim. Meus livros
mais recentes são todos sobre o
que as pessoas querem umas das
outras, ou porque devem permanecer juntas, vivendo, conversando, transando e comendo juntas.
O ponto a que sempre chego,
acredito, é que apenas essas coisas
é que realmente existem.
Folha - Sua primeira idéia era escrever um livro para crianças.
Quando e por que "O Dom de Gabriel" se transformou num romance para adultos?
Kureishi - Fiquei interessado no
isolamento desse garoto. Comecei a ver que havia uma estreita relação com a minha própria sensação de isolamento, com o fato de
eu sempre me perder dentro de
minhas próprias idéias. Gabriel,
ao traduzir o conteúdo de sua
mente nos desenhos, faz o mesmo
que eu com minhas histórias.
Os desenhos de Gabriel produzem sensações em outras pessoas,
e o garoto gosta de observá-las, se
excita com a idéia de que pode alterar a ordem das coisas a partir
do impacto provocado por sua
criatividade. É um sentimento
muito próximo ao que eu experimento ao escrever.
Folha - A relação entre pais e filhos também o tem interessado há
tempos, não?
Kureishi - Sim, diria que meus
últimos livros preocupam-se com
a maneira como os filhos influenciam a vida dos pais, às vezes
transformando-as, noutras superando ou radicalizando suas experiências. Enfim, fui carregado
pela história e ela se transformou
em um romance. Foi positiva a
mudança, acredito. É o que passa
quando as coisas funcionam.
Folha - O seu Gabriel me fez lembrar de outro Gabriel, o colombiano García Márquez, pela maneira
como os momentos mágicos se misturam à narrativa. Você foi influenciado pelo realismo fantástico latino-americano?
Kureishi - Nos anos 70, alguns
autores latino-americanos, como
Gabriel García Márquez e Mario
Vargas Llosa, tiveram grande influência na literatura européia.
Todos lemos Márquez na universidade. Esses autores nos trouxeram um mundo que não conhecíamos. Um mundo em que os sonhos, a fantasia, podiam se misturar ao dia-a-dia das pessoas. O
realismo mágico nos lembrou do
que o surrealismo já havia nos ensinado, que vivemos em vários lugares ao mesmo tempo.
Folha - Em "O Álbum Negro"
(1995), a referência pop era Prince,
neste, e em outros de seus livros, é
David Bowie. Ambos têm uma
identidade e uma sexualidade ambíguas. Por que você se sente atraído por esse tipo de personagem?
Kureishi - Porque me passam a
idéia de que se pode ser diferente,
de que uma pessoa pode ser mais
de uma. São personagens que estão interessados em se transformar, em ser ao mesmo tempo homem e mulher. Se pensarmos em
termos familiares, eles podem ser
mães e pais ao mesmo tempo.
Podem fazer de sua identidade
sexual uma performance. Podem
jogar com a identidade. E identidade sempre foi um tema que me
interessou muito. Prince e Bowie
são teatrais, são performers e me
fazem pensar no que sou, no que
significa fazer uma performance
de si mesmo para o mundo.
Folha - Você se inspirou em sua
experiência nos anos 70 para construir os pais de Gabriel?
Kureishi - São pessoas parecidas
com tipos que conheci. É o mundo em que mergulhei na época. A
maioria dos escritores escrevem
muito próximos de seus inconscientes. Se você analisar seus personagens, percebe que parte de
você mesmo eles representam.
Folha - Nos seus últimos trabalhos, você tem abandonado temas
como o racismo, o pós-colonialismo, que eram tão presentes no começo. Acha que está se transformando em um escritor familiar?
Kureishi - Acho que tudo é a
mesma coisa. O casamento é tão
importante para todas as pessoas
que definem o perfil político de
uma sociedade. A questão racial
ainda me interessa bastante.
Quando se fala de racismo, estamos falando de coisas que outras
pessoas fazem com você. Ou seja,
mesmo quando não estou falando
particularmente de raça, estou
pensando no que outras pessoas
podem fazer conosco.
Folha - Como anglo-indiano, qual
sua opinião acerca da cruzada encabeçada por Bush contra o terror?
Acha que ela materializa o tão falado "choque de civilizações" cogitado por Samuel Huntington?
Kureishi - O Ocidente e o Oriente
sempre foram importantes um
para o outro e agora não menos.
O vácuo deixado pelo fim do comunismo fez com que o Ocidente
tivesse de procurar um espelho e,
ao mesmo tempo, um inimigo, ou
algo que representasse o resto do
mundo e que fosse diferente dele.
Ambos dependem muito um do
outro. O fundamentalismo precisa da sexualidade do Ocidente para ser puritano e assim se justificar, e o Ocidente precisa das necessidades e da degeneração do
Oriente para ser capitalista. Não
há um choque de civilizações, é
como um marido e uma mulher,
ambos precisam um do outro.
O DOM DE GABRIEL. Autor: Hanif
Kureishi. Editora: Companhia das Letras.
Quanto: R$ 31 (252 págs.).
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