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FERNANDO GABEIRA
O que acaba quando o ano acaba?
Os balanços de fim de ano
costumam me enganar. Ou
melhor: os anos costumam me enganar. Às vezes, destaco alguns
fatos, subestimo outros, boa parte
deles ignoro. Com o passar do
tempo, aquilo que ignorei ou subestimei costuma vir puxar minha perna, como faziam os fantasminhas da infância.
A vitória do Bush foi um momento decisivo. As revistas que vinham dos EUA eram escritas ao
som de blues. Parecia que uma
grande ofensiva conservadora seria exportada dos Estados Unidos. Antes mesmo de o ano acabar, a Corte Suprema do Canadá
dava sinal verde ao casamento
gay. E a Rússia ratificava o Protocolo de Kyoto.
Sinal de que la nave va, as coisas seguem seus ritmos, às vezes
lentos, mas emitindo sinais de vida e resistência.
A Ucrânia, toda de laranja na
luz outonal de Kiev, foi uma festa
para os olhares do mundo. Na
aparência, uma vitória da facção
européia. Na realidade, parece
que há muito mais coisa em jogo;
gás e petróleo, certamente.
Aqui no Brasil, o governo levou
um susto com as eleições municipais. Parece que sua nave va: crescimento econômico e aumento da
popularidade de Lula. Acredito
nesse aumento. Alguns afirmam
que melhorias palpáveis ainda
não chegaram a todos. Mas caem
na armadilha da economia.
O crescimento tem também
uma dimensão simbólica.
Sorrisos dos âncoras de TV, números recordes, guindastes erguendo soja, empregos. Impossível dissociar o crescimento material de suas imagens na Globo. É a
visão de conjunto que se recebe no
jantar. Quando a âncora diz que
o risco Brasil caiu, ela o faz com
uma alegria contida. Mesmo que
não entenda o que é risco Brasil,
você pode ler na sua face a mensagem real: isso que está acontecendo é bom para você.
Não existe de fato quem não seja tocado pelo clima de crescimento. Mesmo sem repercussão
material na vida da pessoa, deixa
sempre a esperança de que a coisa
virá para ela.
Lembro-me do governo Sarney
com seu Plano Cruzado. Saímos
às ruas para protestar contra a
proibição do filme "Je Vous Salue,
Marie", de Jean-Luc Godard. Os
transeuntes nos olhavam como se
fossemos marcianos. O país estava crescendo, os fiscais do Sarney
operando nos supermercados, afinal o que queríamos?
Senti como se o exílio não tivesse acabado e agora se prolongava
no interior do país. Pensei na travessia do deserto e imaginei que
não acabava com a ditadura militar, mas que havia desertos entrelaçados; estávamos apenas encontrando mais oásis, mas não
devíamos abandonar o cantil
com a ração de água.
Hoje, compreendo como eram
inadequadas essas imagens. Elas
nos confortam porque suprimem
nossa responsabilidade. Seria o
mesmo que dizer hoje, como diz
Lula, que Deus aperta o botão no
momento em que os deputados
votam. Deus não tem a minha senha. Mesmo se a tivesse, na sua
proclamada onisciência, saberia
também que não abro mão do livre-arbítrio.
Quando examinamos o ano
que acaba e nos olhamos nos espelho, estão os cabelos brancos e
todos os problemas não resolvidos. Nove milhões de crianças
sem saneamento básico; milhares
de adolescentes morrendo nos
conflitos urbanos. No entanto o
ano passou sem que tivéssemos
enfrentado racionalmente a
questão do saneamento e da violência nas metrópoles.
Não tem sentido ficar se lamuriando. Muita coisa foi feita, o
que também não vem ao caso. O
processo eleitoral de 2002, de uma
certa forma, antecipou o choque
de 2006. Até o fim da primeira década do século, seremos dirigidos
por uma das duas grandes forças
em presença. Todos boa gente,
amigos de longa data, mas expressando no Brasil um movimento universal: o fim dos projetos políticos.
O que estará em jogo é a administração pragmática do curso do
capitalismo. E pronto. De vez em
quando, um deles vai segredar
uma estratégia de araque no ouvido de um colunista; de vez em
quando, vão chorar em solenidades públicas; de vez em quando,
num porre de confraternização,
vão cantar a "Internacional".
Embora a história não tenha
acabado, as trajetórias se desenvolvem no vazio, como se fôssemos todos cosmonautas descendo
à Lua ou dizendo que a Terra é
azul. Nossos corpos políticos perderam a gravidade.
Onde houver resistência sempre
haverá o desejo de reconstrução.
De agora em diante, mais do que
nunca, é preciso cuidado. Não
cair na velha tentação de oferecer
suporte intelectual a canoas furadas. Nossa última performance
foi deplorável. Intelectuais andando com pastinhas diante da
câmera, simulando um intenso
trabalho; blindagens psicológicas
que acusavam preconceito onde
havia apenas perplexidade com o
discurso simplório de nosso líder.
O balanço está no azul ou, para
usar a linguagem da economia,
está no vermelho. A sorte é que
nos enganamos, como na eleição
de Bush, mesmo quando somos
pessimistas.
Ao sairmos nas ruas por Godard, o crescimento nos atropelou. Duas décadas depois estamos
aí lutando para liberar documentos, sepultar conselhos de imprensa, agências de controle no audiovisual. Parecemos personagens de
comédias italianas na cidade do
interior, velhos, mas com as mesmas brincadeiras da juventude.
Se um ano consegue nos enganar tanto, imaginem as décadas
acumuladas, uma sucessão de
surpresas tangendo-nos para a
única e definitiva certeza que é a
morte.
Não posso reclamar do governo.
Se dele vêm decepções, também
vêm dele, no seu espetáculo diuturno, as imagens que nos consolam: tente outra vez.
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