São Paulo, sábado, 18 de dezembro de 2004

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FERNANDO GABEIRA

O que acaba quando o ano acaba?

Os balanços de fim de ano costumam me enganar. Ou melhor: os anos costumam me enganar. Às vezes, destaco alguns fatos, subestimo outros, boa parte deles ignoro. Com o passar do tempo, aquilo que ignorei ou subestimei costuma vir puxar minha perna, como faziam os fantasminhas da infância.
A vitória do Bush foi um momento decisivo. As revistas que vinham dos EUA eram escritas ao som de blues. Parecia que uma grande ofensiva conservadora seria exportada dos Estados Unidos. Antes mesmo de o ano acabar, a Corte Suprema do Canadá dava sinal verde ao casamento gay. E a Rússia ratificava o Protocolo de Kyoto.
Sinal de que la nave va, as coisas seguem seus ritmos, às vezes lentos, mas emitindo sinais de vida e resistência.
A Ucrânia, toda de laranja na luz outonal de Kiev, foi uma festa para os olhares do mundo. Na aparência, uma vitória da facção européia. Na realidade, parece que há muito mais coisa em jogo; gás e petróleo, certamente.
Aqui no Brasil, o governo levou um susto com as eleições municipais. Parece que sua nave va: crescimento econômico e aumento da popularidade de Lula. Acredito nesse aumento. Alguns afirmam que melhorias palpáveis ainda não chegaram a todos. Mas caem na armadilha da economia.
O crescimento tem também uma dimensão simbólica.
Sorrisos dos âncoras de TV, números recordes, guindastes erguendo soja, empregos. Impossível dissociar o crescimento material de suas imagens na Globo. É a visão de conjunto que se recebe no jantar. Quando a âncora diz que o risco Brasil caiu, ela o faz com uma alegria contida. Mesmo que não entenda o que é risco Brasil, você pode ler na sua face a mensagem real: isso que está acontecendo é bom para você.
Não existe de fato quem não seja tocado pelo clima de crescimento. Mesmo sem repercussão material na vida da pessoa, deixa sempre a esperança de que a coisa virá para ela.
Lembro-me do governo Sarney com seu Plano Cruzado. Saímos às ruas para protestar contra a proibição do filme "Je Vous Salue, Marie", de Jean-Luc Godard. Os transeuntes nos olhavam como se fossemos marcianos. O país estava crescendo, os fiscais do Sarney operando nos supermercados, afinal o que queríamos?
Senti como se o exílio não tivesse acabado e agora se prolongava no interior do país. Pensei na travessia do deserto e imaginei que não acabava com a ditadura militar, mas que havia desertos entrelaçados; estávamos apenas encontrando mais oásis, mas não devíamos abandonar o cantil com a ração de água.
Hoje, compreendo como eram inadequadas essas imagens. Elas nos confortam porque suprimem nossa responsabilidade. Seria o mesmo que dizer hoje, como diz Lula, que Deus aperta o botão no momento em que os deputados votam. Deus não tem a minha senha. Mesmo se a tivesse, na sua proclamada onisciência, saberia também que não abro mão do livre-arbítrio.
Quando examinamos o ano que acaba e nos olhamos nos espelho, estão os cabelos brancos e todos os problemas não resolvidos. Nove milhões de crianças sem saneamento básico; milhares de adolescentes morrendo nos conflitos urbanos. No entanto o ano passou sem que tivéssemos enfrentado racionalmente a questão do saneamento e da violência nas metrópoles.
Não tem sentido ficar se lamuriando. Muita coisa foi feita, o que também não vem ao caso. O processo eleitoral de 2002, de uma certa forma, antecipou o choque de 2006. Até o fim da primeira década do século, seremos dirigidos por uma das duas grandes forças em presença. Todos boa gente, amigos de longa data, mas expressando no Brasil um movimento universal: o fim dos projetos políticos.
O que estará em jogo é a administração pragmática do curso do capitalismo. E pronto. De vez em quando, um deles vai segredar uma estratégia de araque no ouvido de um colunista; de vez em quando, vão chorar em solenidades públicas; de vez em quando, num porre de confraternização, vão cantar a "Internacional".
Embora a história não tenha acabado, as trajetórias se desenvolvem no vazio, como se fôssemos todos cosmonautas descendo à Lua ou dizendo que a Terra é azul. Nossos corpos políticos perderam a gravidade.
Onde houver resistência sempre haverá o desejo de reconstrução. De agora em diante, mais do que nunca, é preciso cuidado. Não cair na velha tentação de oferecer suporte intelectual a canoas furadas. Nossa última performance foi deplorável. Intelectuais andando com pastinhas diante da câmera, simulando um intenso trabalho; blindagens psicológicas que acusavam preconceito onde havia apenas perplexidade com o discurso simplório de nosso líder.
O balanço está no azul ou, para usar a linguagem da economia, está no vermelho. A sorte é que nos enganamos, como na eleição de Bush, mesmo quando somos pessimistas.
Ao sairmos nas ruas por Godard, o crescimento nos atropelou. Duas décadas depois estamos aí lutando para liberar documentos, sepultar conselhos de imprensa, agências de controle no audiovisual. Parecemos personagens de comédias italianas na cidade do interior, velhos, mas com as mesmas brincadeiras da juventude.
Se um ano consegue nos enganar tanto, imaginem as décadas acumuladas, uma sucessão de surpresas tangendo-nos para a única e definitiva certeza que é a morte.
Não posso reclamar do governo. Se dele vêm decepções, também vêm dele, no seu espetáculo diuturno, as imagens que nos consolam: tente outra vez.


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