São Paulo, segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

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NELSON ASCHER

A nova mão invisível



Nossa elite crê numa nova "mão invisível", não a do mercado, mas a do progresso

LÁ PELA metade de meu primeiro inverno europeu prolongado, amargando havia cerca de mês e meio os dias sombrios de um continente cinzento, encoberto por apenas uma nuvem, mas que se estendia ininterrupta de Lisboa até Moscou e além, eu estava à beira tanto do Sena, como de me atirar em suas águas...
Deprimido, sem entender por que, o que de início me desencorajou de poluir o rio com meu cadáver foi assistir a "Brancaleone nas Cruzadas", experiência antidepressiva cujo efeito perdurou o tempo necessário para que eu descobrisse a razão de meu estado, o que ocorreu alguns dias depois quando, sem aviso prévio, o sol saiu em torno do meio-dia e continuou se exibindo acanhadamente por uma meia hora. Malgrado a luminosidade recobrar logo sua palidez costumeira, aquele intervalo recolocou meu ânimo nos eixos.
Foi assim que constatei, na pele e debaixo dela, que, por um lado, existe uma correlação direta entre a quantidade de luz solar e o equilíbrio dos neurotransmissores e, por outro, que o deleite estético e a discussão de questões existenciais ou políticas não são sempre nem obrigatoriamente as funções mais relevantes e urgentes da sétima arte.
O final feliz seria, conforme apontei na coluna da semana passada, talvez a certeza mais arraigada que o cinema embutiu na consciência do homem contemporâneo. E há boas razões, das comerciais às psicológicas, para que, não segundo um projeto subliminar de manipulação, mas apenas por bom senso, uma indústria que se autodenomina de entretenimento prefira que seus consumidores saiam antes sorridentes do que angustiados. Que o cinema, algo a que a média dedica as horas privilegiadas de lazer, se especialize, terapeuticamente, em fazer o público se sentir bem se explica por meio das leis darwinianas do mercado.
Caso nos lembremos da única lei histórica que nunca falha, a das conseqüências imprevistas, a exposição repetida de bilhões de expectadores, ao longo de quatro gerações, a tamanha variedade de perigos, ameaças e desastres que, sem terem aparentemente saída, resolvem-se da melhor maneira (im)possível, dificilmente poderia deixar de condicionar a forma como vemos o que acontece e o que esperamos do futuro.
Este é um assunto que ainda dará pano de manga. Não faltam, contudo, exemplos ilustrativos, nem sequer na vida política nacional. Quem conheça a história do Leste Europeu e de Cuba pode, familiarizado de antemão com o roteiro, dispensar bolas de cristal e entrever, no presente ou passado recente daqueles povos, nosso próprio futuro.
Um partido, legitimando-se com a conversa fiada da luta de classes, aposta no pior dos instintos humanos, a inveja, e, conforme saqueia fiscalmente a classe média, transferindo parte do butim aos pobres (que adoram ver a afluência alheia não como resultado de trabalho, competência ou sorte, mas de algum roubo ancestral do qual teriam sido vítimas), apropria-se de comissões cada vez maiores, amplia o Estado e se encastela nele.
Os pobres, é claro, só perceberão o mau negócio que fizeram assim que, com o partido consolidado como único e perpétuo detentor do poder, passarem a pagar, em sangue, suor, lágrimas e em desenvolvimento postergado para nunca, os juros e correção monetária da esmola que aceitaram. Peixes também acabam descobrindo, geralmente tarde, que certas minhocas apetitosas eram boas demais para serem de graça. Mas e a tal oposição burguesa que, a despeito do curso superior e da pós-graduação, até entende, às vezes, a realidade e tem informação?
Bom, nossa elite crê numa nova "mão invisível", não a do mercado (desta não há muitos que gostem), mas a do progresso. Com sua ajuda, mesmo oportunistas e proponentes de utopias regressivas trabalham, sem querer nem sabê-lo, em prol de um porvir radiante e, por mais que o conduzam com intenções suicidas, levarão inevitavelmente, quem sabe porque seus trilhos já foram colocados por outros, o "trem da história" ao destino desejável e certo.
Daí provém uma parcela generosa da tibieza e ineficácia das oposições nacionais. O que esperar, no entanto, de gente que acredita, no fundo da alma, que, se bem que inconscientemente e a contragosto, fundamentalistas religiosos e clericalistas fanáticos são de fato agentes involuntários da modernização do mundo islâmico?


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