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MARCELO COELHO
O conto-do-vigário para brasileiro ver e cair
"Excuse me. Do you speak English?" A pergunta me tomou de
surpresa, por volta das onze da
noite, enquanto eu tentava estacionar o carro perto da praça Villaboim. Baixei o vidro. Um americano com menos de 30 anos,
usando barba e rabo-de-cavalo,
olhava-me com ar de desespero.
O leitor pode bem desconfiar do
que se tratava: um conto-do-vigário puro e simples. Mas uma coisa
é perceber a vigarice quando a vítima narra o caso. Outra é vivê-la,
no improviso da própria inocência.
O americano se aproximou e
disse, num inglês perfeito, que era
estudante na Unicamp e tinha sido assaltado. "Burglary, you
know?"
Orgulhei-me de conhecer o sentido do termo. Ele suava e parecia
exausto. Tinha de voltar a Campinas. Estava sem dinheiro para a
passagem.
Não, não foi tão simples assim.
Antes de recorrer à generosidade
pública, o americano tentara falar com seu orientador na Unicamp -um chefe de departamento de nome Barbosa ou Pereira, não me lembro- para que lhe
arranjasse uma condução de volta a Campinas. Barbosa, ou Pereira, estava inencontrável.
O americano foi então a uma
delegacia em busca de socorro.
Mas lá não teve sorte. Reclamou
do tratamento recebido: "They
were very rude with me."
Sua causa tornou-se vitoriosa
com isso. Desembolsei os R$ 16,00
que ele pedia para a passagem de
volta a Campinas.
Minutos depois, num restaurante, comecei a desconfiar da
história. Era tarde demais; e a suspeita de ter sido vítima de um
conto-do-vigário não anulava o
prazer de ter sido civilizado e gentil com um representante do Primeiro Mundo.
O falso pós-graduando da Unicamp continua em atividade; pessoas a quem contei o episódio viram-no nas imediações da avenida Paulista, e não fui o único a lhe
dar dinheiro. Ele fizera questão,
aliás, de pedir meu telefone para
reembolsar o "empréstimo" assim
que voltasse à Unicamp. Recusei,
como diria Fernando Pessoa,
"num gesto largo, liberal e moscovita".
Posso ser um palerma, mas acho
que esse golpista americano tem
algo de gênio. Claro que a história
da passagem de ônibus é conhecidíssima, mas o tempero acrescentado pelo americano (era americano mesmo, não duvido) merece
elogios.
Ele percebeu várias coisas a respeito de nosso país, e da classe à
qual pertenço.
Em primeiro lugar, envaidece
suas vítimas quando fala em inglês. Só pelo fato de compreendê-lo estou disposto a pagar uma taxa.
Apela, em seguida, para o orgulho nacional. Temos a alegria de
não sermos xenófobos. O estrangeiro sempre nos parece superior:
mais culto, mais civilizado. Nacionalizamos a patifaria. Se o brasileiro, por definição, é o malandro, aquele que quer levar vantagem em tudo, decorre mais ou
menos logicamente que o gringo é
honesto e ingênuo. Sentimos orgulho, portanto (eu senti, pelo menos) ao ser ingênuos.
Curiosa forma de nacionalismo,
a que se expressa em submissão;
mas é assim que funcionamos, a
meu ver.
O americano tocou, além disso,
em dois pontos sensíveis da consciência nacional. Aludiu, no drama da condução, à penúria das
universidades públicas. E reclamou do despreparo da polícia.
Sabemos que as duas coisas são
reais. Nesse momento, eu só podia, engrolando frases em inglês,
concordar com o escroque. Dei-lhe dinheiro porque confirmava
minhas opiniões.
No restaurante, já tomado pela
desconfiança, raciocinei assim:
"há muita chance de eu ter sido
enganado. Mas prefiro ter dado o
dinheiro a um malandro do que
ser hostil a um inocente."
Claro que, depois de saber que o
golpe é aplicado frequentemente
pelo americano, mudei de idéia.
Tiro as seguintes conclusões.
Primeira, R$ 16,00 não fazem falta a ninguém que transita pela
praça Villaboim. Segunda, pessoas que se julgam civilizadas
obedecem a qualquer um que fale
inglês fluente. Terceira, os problemas do país ganham visibilidade
quando denunciados por organismos internacionais.
Não por acaso, a praça Villaboim é a sede do tucanato paulista. Fernando Henrique tem apartamento ali perto. O americano
sabia onde estava se metendo.
Nossa subserviência à globalização talvez seja difícil de evitar.
Mas o prazer que sentimos no
processo, e nossa culpa pelo atraso em aderir a ele, mereceriam
entretanto a intervenção de um
psicanalista internacional.
Os R$ 16,00 que dei ao vigarista
equivalem aos R$ 16 bilhões que o
segundo escalão concede a aventureiros espanhóis ou canadenses
num processo qualquer de privatização.
A cada dia, o Brasil se civiliza.
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