São Paulo, Quarta-feira, 19 de Janeiro de 2000


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MARCELO COELHO
O conto-do-vigário para brasileiro ver e cair

"Excuse me. Do you speak English?" A pergunta me tomou de surpresa, por volta das onze da noite, enquanto eu tentava estacionar o carro perto da praça Villaboim. Baixei o vidro. Um americano com menos de 30 anos, usando barba e rabo-de-cavalo, olhava-me com ar de desespero.
O leitor pode bem desconfiar do que se tratava: um conto-do-vigário puro e simples. Mas uma coisa é perceber a vigarice quando a vítima narra o caso. Outra é vivê-la, no improviso da própria inocência.
O americano se aproximou e disse, num inglês perfeito, que era estudante na Unicamp e tinha sido assaltado. "Burglary, you know?"
Orgulhei-me de conhecer o sentido do termo. Ele suava e parecia exausto. Tinha de voltar a Campinas. Estava sem dinheiro para a passagem.
Não, não foi tão simples assim. Antes de recorrer à generosidade pública, o americano tentara falar com seu orientador na Unicamp -um chefe de departamento de nome Barbosa ou Pereira, não me lembro- para que lhe arranjasse uma condução de volta a Campinas. Barbosa, ou Pereira, estava inencontrável.
O americano foi então a uma delegacia em busca de socorro. Mas lá não teve sorte. Reclamou do tratamento recebido: "They were very rude with me."
Sua causa tornou-se vitoriosa com isso. Desembolsei os R$ 16,00 que ele pedia para a passagem de volta a Campinas.
Minutos depois, num restaurante, comecei a desconfiar da história. Era tarde demais; e a suspeita de ter sido vítima de um conto-do-vigário não anulava o prazer de ter sido civilizado e gentil com um representante do Primeiro Mundo.
O falso pós-graduando da Unicamp continua em atividade; pessoas a quem contei o episódio viram-no nas imediações da avenida Paulista, e não fui o único a lhe dar dinheiro. Ele fizera questão, aliás, de pedir meu telefone para reembolsar o "empréstimo" assim que voltasse à Unicamp. Recusei, como diria Fernando Pessoa, "num gesto largo, liberal e moscovita".
Posso ser um palerma, mas acho que esse golpista americano tem algo de gênio. Claro que a história da passagem de ônibus é conhecidíssima, mas o tempero acrescentado pelo americano (era americano mesmo, não duvido) merece elogios.
Ele percebeu várias coisas a respeito de nosso país, e da classe à qual pertenço.
Em primeiro lugar, envaidece suas vítimas quando fala em inglês. Só pelo fato de compreendê-lo estou disposto a pagar uma taxa.
Apela, em seguida, para o orgulho nacional. Temos a alegria de não sermos xenófobos. O estrangeiro sempre nos parece superior: mais culto, mais civilizado. Nacionalizamos a patifaria. Se o brasileiro, por definição, é o malandro, aquele que quer levar vantagem em tudo, decorre mais ou menos logicamente que o gringo é honesto e ingênuo. Sentimos orgulho, portanto (eu senti, pelo menos) ao ser ingênuos.
Curiosa forma de nacionalismo, a que se expressa em submissão; mas é assim que funcionamos, a meu ver.
O americano tocou, além disso, em dois pontos sensíveis da consciência nacional. Aludiu, no drama da condução, à penúria das universidades públicas. E reclamou do despreparo da polícia.
Sabemos que as duas coisas são reais. Nesse momento, eu só podia, engrolando frases em inglês, concordar com o escroque. Dei-lhe dinheiro porque confirmava minhas opiniões.
No restaurante, já tomado pela desconfiança, raciocinei assim: "há muita chance de eu ter sido enganado. Mas prefiro ter dado o dinheiro a um malandro do que ser hostil a um inocente."
Claro que, depois de saber que o golpe é aplicado frequentemente pelo americano, mudei de idéia.
Tiro as seguintes conclusões. Primeira, R$ 16,00 não fazem falta a ninguém que transita pela praça Villaboim. Segunda, pessoas que se julgam civilizadas obedecem a qualquer um que fale inglês fluente. Terceira, os problemas do país ganham visibilidade quando denunciados por organismos internacionais.
Não por acaso, a praça Villaboim é a sede do tucanato paulista. Fernando Henrique tem apartamento ali perto. O americano sabia onde estava se metendo.
Nossa subserviência à globalização talvez seja difícil de evitar. Mas o prazer que sentimos no processo, e nossa culpa pelo atraso em aderir a ele, mereceriam entretanto a intervenção de um psicanalista internacional.
Os R$ 16,00 que dei ao vigarista equivalem aos R$ 16 bilhões que o segundo escalão concede a aventureiros espanhóis ou canadenses num processo qualquer de privatização.
A cada dia, o Brasil se civiliza.


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