São Paulo, sexta-feira, 19 de janeiro de 2001

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GASTRONOMIA

Um balé de cozinheiros

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Era o último dia do treino-ensaio para o Concurso Bocuse D'Or, que terá lugar na cidade de Lyon (França) em 23 e 24 de janeiro próximos. O Brasil é um dos 22 países que participam da competição, sob o patrocínio da Nestlé.
A cozinha da Nestlé está armada à moda de anfiteatro, com os cozinheiros no palco e uma fila de cadeiras mais altas para que se possa apreciar o espetáculo.
Os atores eram jovens, pouco mais de 20 anos. O chef já começa a pôr umas gordurinhas na cintura, próprias da profissão. É carioca, moreno claro, olhos amendoados como os de um chinês. Adilson Pereira Batista, vencedor do Toque D'Or 2000, concurso que o classificou como representante do Brasil. Está no ramo desde os 9 anos de idade, admirador de seu pai, chefe de brigada.
Ao seu lado, o ajudante, magro, feições finas, tanto podia ser um físico nuclear quanto cozinheiro. Queria mesmo é ser ator, experimentou, mas força maior se levantou. Gestos medidos, compenetrado de sua função modesta e esplêndida de ajudante. Rodrigo Lacerda.
Na posição privilegiada em que eu estava, podia observá-los a dez palmos de suas bancas. Tinham em comum uma capacidade enorme de concentração. As notas dissonantes comuns à ansiedade de uma véspera de viagem passavam despercebidas. "Já disse que a entrada é proibida. Jornalista só à tarde para fotografar os rapazes." "Quando é que ficam prontas estas famigeradas bandejas?" "Onde está a gordura do pato?"
Pareciam estar numa bolha que os poupava do movimento ao redor. Não olhavam para os lados, nem para cima, só para dois enormes robalos e um cordeiro de 16 kg que acabavam de receber. Esses os ingredientes principais para se botarem à procura do Tosão de Ouro ou a mão da filha do rei ou a classificação no Bocuse.
O sistema de exaustão da cozinha deve ser muito bom, pois quase não sentíamos cheiros fortes, o que era estranho. Em compensação, havia muita cor e textura e ruídos ritmados. Afiar de facas, tilintar de garfos, água correndo, pratos lavando, esfregar de panelas ao fundo. Um marcador de tempo trinava baixinho comandando os minutos e segundos do descamar do peixe, do destrinchar do cordeiro, da construção de caldos fundamentais.
Dentro da bolha protetora, via-se que a atenção extrema não eliminava o prazer com que trabalhavam em sintonia perfeita. Aos ingredientes principais foram se juntando os coadjuvantes: mandioquinhas amarelas, abobrinhas no primeiro frescor, berinjelas muito roxas, aspargos tenros, alhos-porós, cogumelos, aipos rábanos, maçãs, passas, foies gras, vinhos, azeites, manteigas.
Poderia ser o caos, o primeiro dia da criação, na sua casa e na minha, mas era a ordem absoluta, o perfeito balé. O barroco tocado com concisão e economia de movimentos.
O que se via era a transformação, o dar vida civilizada a um vasto "terroir" sem dono. Era só bater, amassar, misturar, picar, rechear, enrolar, envolver sem os destampatórios e desleixo tão próprios à profissão, substituídos pela disciplina, limpeza, educação e, por que não, graça.
Com pouquíssimas intervenções escondiam-se pelos cantos os regentes. David Jobert coordenava, atendia a possíveis imprevistos, sem poder esconder a alegria de estar a dez dias de Lyon, terra do avô. Laurent Suaudeau inspecionava, corado, calmo e orgulhoso das sementes que lançou e que já se tornam pequenas árvores robustas. Francisco Frank, vencedor do Toque D'Or 1999, ensinava a descontração para o grande dia. Afinal, era o testemunho vivo que a experiência não matava. Que se jogassem a Lyon como Garrinchas, lúdicos, uma cozinha é uma cozinha, é uma cozinha, em qualquer lugar do mundo. E o importante é mostrar que brasileiro é terra boa e que, em se plantando, dá.
O reloginho trinou o tempo final, as bandejas estavam prontas e alinhadas como escolas de samba esperando nota dos jurados por originalidade, sabor e tempo adequado... Receitas só depois do concurso!!!!! Esperem...

E-mail: ninahort@uol.com.br


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