São Paulo, sábado, 19 de janeiro de 2008

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Análise

Obras têm estabelecimento rigoroso de textos

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Para alguém que dizia -numa das frases mais geniais da língua que ele tanto amou e que ajudou a reinventar- "entre a certeza decidida que eletrocuta e a fé franca que se recusa a julgar, nasci para esta"-, fica difícil falar em edição "definitiva" de suas obras. O que pode ser definitivo na vida ou na obra de Mário de Andrade? O fato é que ele não está mesmo mais entre nós e, se há alguém que pode realizar algo próximo do definitivo em relação a ele, esta pessoa é Telê Porto Ancona Lopez.
Pois é ela a organizadora destas "edições definitivas" de "Macunaíma", "Amar, Verbo Intransitivo" e "Os Filhos da Candinha", pela Editora Agir, com a colaboração de outros especialistas. O que muda em relação às anteriores é o estabelecimento do texto (a notação rigorosa das várias versões elaboradas pelo autor) e os comentários dos organizadores.
Mas o mais importante, sem dúvida, é mesmo aquilo que não muda, ou melhor, aquilo que está sempre em mutação.
"Macunaíma" sempre foi e sempre será o rosto nu e ao mesmo tempo multimascarado desse povo, "nós (brasileiros), que existimos pouco, demasiado pouco". E, além das personagens, o que muda e nunca muda é a língua de Mário, para quem não importava a vida, mas sim viver, como ele dizia.
Uma língua sempre em estado de acontecimento, de gerúndio.
O lançamento simultâneo destes três livros dá conta dos três estilos literários que Mário dizia praticar: o heróico-poético, de "Macunaíma", o falado, de "Belazarte" e de "Amar, Verbo Intransitivo", e o normal, de "Os Filhos da Candinha". As crônicas deste último, de tão saborosas e densas, fazem a gente ter pena de que não haja mais espaço como antes para que cronistas assim digam e desenvolvam livremente coisas como: "É chegado o momento de vos descrever minha esquina", da crônica "Esquina", em que Mário, ao descrever a exata geografia de onde morava, no Rio de Janeiro, falava também do tempo, da vida, do Brasil.
Mas talvez o que esta coleção traga de mais precioso é uma reunião de depoimentos, que não estará à venda. São testemunhos de pessoas que conheceram Mário, desde Antonio Candido e Ulysses Guimarães, até seu vizinho de porta e seu secretário. É aí que reponta a figura, que segundo Ulysses Guimarães, "era todo doçura, com aqueles lábios grossos, que parecia que queria comer a vida, deglutir a vida, era um epicurista da vida." Ou o Mário que aconselhava a um poeta novo: "Principalmente, não aceite."
Infelizmente, poeta, andamos aceitando muito ultimamente. Conhecer esse polígrafo que, com insônia, ficava a tocar recitais de Bach durante a noite, que, segundo todos que o conheceram, tinha um "coração enorme", faz com que pensemos como Mario da Silva Brito, que considerava absurda esta história de querer saber se Mário é maior ou Oswald é maior. "Os dois são o verso e o reverso da cultura brasileira".
Dois brasileiros que existiram muito, demasiado muito e para quem dá sempre vontade de perguntar, como fazia Rachel de Queiroz: "Vamos conversar porcaria?"


MACUNAÍMA, O HERÓI SEM NENHUM CARÁTER (240 págs.)
OS FILHOS DA CANDINHA (192 págs.)
AMAR, VERBO INTRANSITIVO (184 págs.)
Autor:
Mário de Andrade
Editora: Agir
Quanto: R$ 34,90 (cada título)
Avaliação: ótimo
Lançamento: seg., às 19h, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional (av. Paulista, 2073, tel. 0/xx/11/ 3170-4033)


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