São Paulo, sábado, 19 de janeiro de 2008

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RODAPÉ LITERÁRIO

Philip Roth e o ensaio do fim

À fórmula "um homem com o outono no coração e óculos no nariz" somou um terceiro termo, "sangue no pênis"

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

ASSOMBRADO PELA precariedade do corpo -falho, em descompasso com a mente e na vizinhança da morte, tal qual em "Homem Comum"-, o último livro de Philip Roth, "Exit Ghost" (fantasma de saída, em tradução aproximada, 2007), tem sua mola mestra no tema da forja de um escritor moderno, americano e judeu.
A receita primitiva passava pela correção vitalista e erotizante que, um dia, Roth aplicou à definição de Isaac Bábel: à fórmula "um homem com o outono no coração e óculos no nariz" somou um terceiro termo, "sangue no pênis". Os estragos de um câncer na próstata, impotência e incontinência, obrigam o protagonista de "Exit Ghost", aos 71 anos, a encarar as conseqüências cômicas, trágicas e grotescas das tentativas de seguir honrando-a estritamente.
Contra o paradigma de uma arte em que os vestígios da experiência se apagam, despersonalizados, na pureza da forma, típico do alto modernismo europeu, a ficção de Roth optou pela sucessiva encarnação, desdobrando-se numa cadeia de duplos, personagens anfíbios, com um pé visível no real, que dão livre curso a seu talento para a sátira fundada na auto-análise.
O jogo de máscaras, provocativo e nada ingênuo, expõe as cicatrizes deste corpo-a-corpo inventivo com a matéria primeira da literatura, a vida como ela é, vivida ou imaginada. No seu caso, indissociável das memórias da infância judaica em Nova Jersey e dos desdobramentos do desafio da tradição, personificada na autoridade do pai.
Nesta nova investida contra uma leitura simplória e literalista da ficção, calcada no imediatismo biográfico, seu duplo mais fiel, Nathan Zuckerman, aparece agora num retrato do artista quando senil, que espelha e inverte o gesto de rebeldia original de "The Ghost Writer" (1979), romance em que é um aspirante à genialidade literária, Dedalus do Novo Mundo.
"Exit Ghost" se passa na América pós-11/9, mais exatamente em 2004, na semana da reeleição tungada de George W. Bush. Depois de 11 anos de isolamento total, escrevendo nas montanhas, demissionário da vida contemporânea, amorosa inclusive, ao passar por Nova York para se tratar, Zuckerman vê-se tentado a começar de novo.
Mas no cabo de guerra entre os "não-mais" e os "ainda-não", a sua ponta é a primeira. O envolvimento com um casal de jovens escritores, o desejo apesar do corpo, o reencontro de uma musa e personagem, amante de seu "pai" literário, E. I. Lonoff, personagens de "The Ghost Writer", encenam um jogo de paródias e inversões, trazendo ao primeiro plano não mais a vida, a memória como raiz da fantasia, mas a arte, invenção apesar da memória que esmorece. E deste contraponto, não importam os anos, Roth continua senhor.


EXIT GHOST
Autor:
Philip Roth
Editora: Houghton Mifflin
Quanto: R$ 70, em média (304 págs.)
Avaliação: bom


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