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RODAPÉ LITERÁRIO
Philip Roth e o ensaio do fim
À fórmula "um homem com o outono no coração e óculos no nariz" somou um terceiro termo, "sangue no pênis"
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
ASSOMBRADO PELA precariedade do corpo -falho, em descompasso com a mente e na
vizinhança da morte, tal qual em
"Homem Comum"-, o último livro
de Philip Roth, "Exit Ghost" (fantasma de saída, em tradução aproximada, 2007), tem sua mola mestra no
tema da forja de um escritor moderno, americano e judeu.
A receita primitiva passava pela
correção vitalista e erotizante que,
um dia, Roth aplicou à definição de
Isaac Bábel: à fórmula "um homem
com o outono no coração e óculos no
nariz" somou um terceiro termo,
"sangue no pênis". Os estragos de
um câncer na próstata, impotência e
incontinência, obrigam o protagonista de "Exit Ghost", aos 71 anos, a
encarar as conseqüências cômicas,
trágicas e grotescas das tentativas de
seguir honrando-a estritamente.
Contra o paradigma de uma arte
em que os vestígios da experiência
se apagam, despersonalizados, na
pureza da forma, típico do alto modernismo europeu, a ficção de Roth
optou pela sucessiva encarnação,
desdobrando-se numa cadeia de duplos, personagens anfíbios, com um
pé visível no real, que dão livre curso
a seu talento para a sátira fundada
na auto-análise.
O jogo de máscaras, provocativo e
nada ingênuo, expõe as cicatrizes
deste corpo-a-corpo inventivo com
a matéria primeira da literatura, a
vida como ela é, vivida ou imaginada. No seu caso, indissociável das
memórias da infância judaica em
Nova Jersey e dos desdobramentos
do desafio da tradição, personificada
na autoridade do pai.
Nesta nova investida contra uma
leitura simplória e literalista da ficção, calcada no imediatismo biográfico, seu duplo mais fiel, Nathan
Zuckerman, aparece agora num retrato do artista quando senil, que espelha e inverte o gesto de rebeldia
original de "The Ghost Writer"
(1979), romance em que é um aspirante à genialidade literária, Dedalus do Novo Mundo.
"Exit Ghost" se passa na América
pós-11/9, mais exatamente em
2004, na semana da reeleição tungada de George W. Bush. Depois de 11
anos de isolamento total, escrevendo nas montanhas, demissionário
da vida contemporânea, amorosa
inclusive, ao passar por Nova York
para se tratar, Zuckerman vê-se tentado a começar de novo.
Mas no cabo de guerra entre os
"não-mais" e os "ainda-não", a sua
ponta é a primeira. O envolvimento
com um casal de jovens escritores, o
desejo apesar do corpo, o reencontro de uma musa e personagem,
amante de seu "pai" literário, E. I.
Lonoff, personagens de "The Ghost
Writer", encenam um jogo de paródias e inversões, trazendo ao primeiro plano não mais a vida, a memória
como raiz da fantasia, mas a arte, invenção apesar da memória que esmorece. E deste contraponto, não
importam os anos, Roth continua
senhor.
EXIT GHOST
Autor: Philip Roth
Editora: Houghton Mifflin
Quanto: R$ 70, em média (304 págs.)
Avaliação: bom
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