São Paulo, quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

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MARCELO COELHO

Cruzeiros


Um cruzeiro de navio "simples", sem tema, não satisfaz o bastante. É preciso um "tema"

E VEM aí, meus amiguinhos e amiguinhas, o Cruzeiro Temático da Turma da Mônica. Zarpando de Santos, com destino Itajaí (SC), um navio de luxo terá a bordo Cebolinha, Magali, Cascão e muito mais. O próprio Mauricio de Sousa está encarregado de fazer uma palestra, se alguém puder ouvir alguma coisa em meio à algazarra.
Crianças de até 11 anos não pagam (repito: não pagam), mas os pais, imagino, certamente ficarão quites com seus pecados pelo menos até a Copa de 2014.
Para famílias que já não estão nessa fase, as companhias de turismo oferecem variedades de cruzeiro temático. Há viagens exclusivas para a torcida corintiana; festivais da canção sertaneja em alto-mar; cruzeiros místico-vegetarianos, heavy metal, anos 50, que sei eu.
Quanto a mim, estive num cruzeiro há bastante tempo, para o caderno Turismo, da Folha. Tratava-se de visitar uma geleira no Chile. O cruzeiro não era temático; mesmo assim, não deixava de ser.
Um aparelho de som incrustado na cabine emitia cantos de passarinho às sete da manhã -era o despertar coletivo dos passageiros. E logo em seguida um coral feminino começava a cantar uma musiquinha composta especialmente em homenagem ao "glaciar San Rafael".
Éramos convidados a visitar uma exposição de fotos da geleira; a assistir uma palestra sobre a geleira; a conversar com o comandante do navio sobre a geleira; a entender, finalmente, por que aquela geleira não era igual às demais geleiras. Até que, depois de dois ou três dias, chegávamos até ela. A geleira.
De modo que aquele cruzeiro era também temático. Seu tema era a geleira, lindíssima, aliás.
Mas me preocupa a ideia de que, ao objetivo X (uma geleira, por exemplo), seja adicionado um tema Y (Ivete Sangalo, o Vasco da Gama, a Cozinha Maravilhosa de Ofélia).
No espírito "all-inclusive" (onde tudo o que você quiser consumir está incluído no preço), é como se uma bússola imaginária começasse a apontar para todas as direções, juntando futebol e pinguins, degustação de vinhos e observação de baleias, curso de saltos ornamentais com as novas aventuras de Cascão.
Mas é nisso que os cruzeiros temáticos capricham. Trata-se de uma espécie de confissão.
O que se admite, afinal, é que um cruzeiro de navio "simples", sem tema, não satisfaz o bastante. Horas e horas vendo apenas o azul do mar, sentindo o balanço do navio, o vento mais cortante da noite?
Não, isso não interessa. É preciso um "tema". Desembarcar numa ilha de areias brancas, entrar pelo Amazonas adentro, esperar pelos carregamentos encostado no cais? É pouco. É vazio, e o vazio tem de ser preenchido de alguma forma.
Vazio de tempo, sem dúvida, porque as horas não passam no navio. Vazio de significado, também. Pois, enquanto transcorre o tempo da espera, é bem possível que venha a pergunta terrível: "O que vim fazer aqui, afinal?".
Precisamos de "temas", portanto. E não só quando entramos em um navio.
Festas de aniversário, por exemplo, não mais se contentam em ser simplesmente festas de aniversário, nem se seguram se o tema for apenas o próprio aniversariante.
Em Las Vegas, como se sabe, não basta que no cassino existam roletas e máquinas caça-níqueis. Acrescentam-se diferenças temáticas: um hotel será romano como o Coliseu, outro coberto de abacaxis e sarongues havaianos.
Entre-se num sex shop, e "fantasias" estarão à disposição do consumidor: enfermeiras, capetinhas, frades ou carrascos "tematizarão" o encontro amoroso.
Existem condomínios, prédios de apartamento "temáticos" também. Restaurantes, nem se fala. Um restaurante mineiro será "temático" para além da culinária, e seus garçons poderão usar botina e chapéu de palha, como os de uma churrascaria gaúcha se apresentam de botas e bombachas.
O Natal já é "temático" por si mesmo: o mundo inteiro adere ao tema da neve, das luzes e dos trenós.
Insuportável, aparentemente, é reencontrar o mundo tal como é, em sua realidade, em seu despojamento, em sua nudez sem fantasias. Um lugar onde o mar fosse simplesmente o mar, e o céu nada mais que o céu. Navios traziam, imagino, sensações assim; mas a realidade simples foi atingida por algum iceberg gigantesco e invisível, e faz força para não naufragar de vez.

coelhofsp@uol.com.br


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