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São Paulo, quarta-feira, 19 de fevereiro de 2003

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MARCELO COELHO

Época de angústia

Acabou o horário de verão, para minha tristeza; mas acho que faço parte da minoria nesse assunto. Muita gente reclama, até manda cartas para o jornal, só porque, durante algum tempo, o sol começa a se pôr às oito da noite.
A anomalia, para mim, cerca-se de cansaço e de doçura, como se o dia quente se despedisse em grande estilo, devagar, com sobras largas de tempo. Parece-me um ganho, também, olhar no relógio e ficar espantado com o fato de que ainda é dia. Talvez os adversários do horário de verão considerem isso uma injustiça, uma fraude. De minha parte, simpatizo mais com o universo do "ainda" (ainda dá tempo, ainda não escureceu...) do que com as exclamações e os sustos do "já": "Já são oito, já estamos em fevereiro!"
Já estamos em fevereiro! O trânsito na cidade ficou terrível de novo (não que antes estivesse bom, mas a gente se esquece de como pode piorar) e vivemos a época, para mim sempre traumática, da volta às aulas.
Lembro-me da angústia com que, em finais de janeiro, via nos jornais de domingo os primeiros anúncios das lojas de departamento. "Volta às aulas é no Mappin!" Desenhos de crianças de uniforme e ofertas de material escolar ocupavam páginas e páginas. Sapatos Vulcabrás. Caderno espiral. Caderno brochura. Meia três quartos. Era sinistro.
Outra coisa que me deixava doente, aliás, era o material escolar. Meu sonho era chegar, no primeiro dia de aula, já com todas as compras feitas, com a lista de livros atendida; e isso não dava certo nunca. Faltava o livro de geografia; o de matemática tinha chegado, mas todos os exemplares já tinham sido vendidos; o de português era aquele mesmo, mas só que da sétima série, não da sexta.
Quando tudo finalmente entrava nos eixos, já tinha perdido a novidade. As sombras do precário, do improvisado, do "logo mais se arranja" tiravam o brilho do material comprado, das capas dos livros cortando de tão novas, das primeiras páginas da agenda, que estalavam, intactas de lições.
Nesse quadro de angústia e prejuízo, havia, contudo, uma coisa agradável, que era voltar para casa depois de passar muito tempo fora de São Paulo. As férias naquele tempo eram enormes; eu ficava meses no litoral. Cito agora outro texto de Theodor Adorno (1903-1969), do mesmo livro de que falei na semana passada. Peço desculpas pela repetição, mas "Minima Moralia" fornece assunto que não acaba mais.
"A criança que volta das férias", diz Adorno, "reencontra um apartamento que lhe parece novo, limpo, em festa. Não é que alguma coisa tivesse mudado enquanto a criança estava fora. É que ela simplesmente esqueceu as obrigações que cada móvel, cada janela, cada abajur guarda consigo. A casa reencontrou a paz do shabat (do dia do descanso) e, durante alguns minutos, a criança está acolhida num universo único de quartos, de aposentos e corredores, de tal modo que a vida inteira, depois disso, parecerá mentirosa ao aparentar reproduzir essa sensação."
O filósofo marxista continua: "Não será de outro modo que, um dia, o mundo irá aparecer, quase inalterado, sob a luz perene de um feriado, quando não estiver mais submetido à lei do trabalho; para os que chegarem de novo em casa, a lição de casa será fácil como uma brincadeira das férias".
Eis um dos raros momentos utópicos na obra de um filósofo geralmente tido por muito pessimista. A imagem dos móveis e dos objetos "em paz", liberados da associação que habitualmente mantêm com os deveres e com o trabalho, é bem a de um mundo de conto de fadas, em que as coisas parecem ter vida própria e fingem ignorar nossa presença.
É provável que toda criança tenha tido a impressão (não lembro se o próprio Adorno não fala nisso) de que, fechando a porta, todas as coisas de um quarto começam a se mover, dançam como num desenho animado e que só retornam à quietude se novamente olhamos para elas. Um pouco como se fossem alunos fazendo bagunça na ausência do professor. E, quando abrimos de novo a porta do quarto, as coisas, embora silenciosas e imobilizadas, ainda parecem reprimir um risinho; mostram um bom comportamento que mal segura a euforia que elas encontravam no fato de existir.
Esse risinho secreto é, sem dúvida, o equivalente fantástico do prazer que, inconscientemente, encontramos ao reconhecer as coisas como são. Imagino o que seja para um bebê, por exemplo, deparar-se com um brinquedo colorido (o mesmo de ontem e de anteontem) e sentir intensamente que aquele brinquedo é... o mesmo!
Imagino que o bebê, embora sinta que o brinquedo é o mesmo, não sabe, não tem instrumentos intelectuais para lidar com a identidade do que vê. Talvez sinta uma duplicação, uma triplicação do objeto não no espaço, mas no tempo... Mais ainda: como o bebê não tem palavras, seu espanto mudo diante da não-novidade se transfere para o brinquedo, para a coisa; então, é como se aquele carrinho, aquele boneco, aquela caixa de plástico amarela, azul e vermelha falassem em seu lugar.
O que estariam falando? Não temos como reproduzir isso em linguagem; mas sabemos o que é.
Antes que este artigo fique metafísico demais, termino com um comentário rápido.
Esse mundo do conto de fadas, dos objetos que se movem sozinhos e estão prontos para nos servir, é também o mundo da tecnologia. Só que, em vez de liberadas, as pessoas parecem cada vez mais presas a seus compromissos e deveres. As férias, certamente, não começaram ainda.


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