São Paulo, segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

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GUILHERME WISNIK

O "bode" revisitado


Nova York revê Robert Moses, responsável por ícones da cidade e associado à brutalidade arquitetônica

NOVA YORK realiza uma extensa revisão do legado de um dos seus maiores personagens. Trata-se da exposição "Robert Moses and the Modern City", organizada pela Columbia University em três museus simultaneamente. Moses é uma figura controversa e pode ser tomado como um ícone da autoconfiança americana do pós-guerra, à altura de outro Robert igualmente famoso: McNamara. Criador das auto-estradas urbanas, Moses polarizou intensas disputas com ativistas comunitários nos anos 60, como a urbanista Jane Jacobs, que defendiam a preservação de bairros históricos e um pensamento mais voltado para a pequena escala.
Atravessando quatro décadas na administração pública (1934 e 1968), Moses é responsável por uma infinidade de ícones nova-iorquinos, como as pontes Triborough, Verrazano-Narrows, o túnel Brooklyn-Battery, e as "parkways" Henry Hudson, Grand Central e Cross Island. Além disso, construiu as praias de Jones e Orchard, o aeroporto JFK e uma enorme rede de usinas hidrelétricas em torno das cataratas do Niágara. Recuperando mais de 1.500 parques, criou o amado Riverside Park, e um conjunto de 23 piscinas públicas em diferentes bairros da cidade.
Contudo, sua imagem ficou menos associada a essas obras, tributárias do humanismo do "New Deal", do que à brutalidade desumana de suas intervenções dos anos 50 e 60, como a via expressa Cross-Bronx, que cortou o bairro ao meio, reduzindo o seu entorno a montes de construções carbonizadas. Essa é a descrição feita por Robert Caro em "The Power Broker" ("o intermediário do poder"), biografia lançada em 1974 que serve de base à análise de Marshall Berman em "Tudo que É Sólido Desmancha no Ar" (Companhia das Letras, 1986). Para Berman, Moses é o Fausto encarnado, a personificação do "mundo da via expressa", estágio predatório da modernidade que devora suas conquistas anteriores, transformando-as em toneladas de cimento e fumaça.
Tanto Caro quanto Berman adotam uma perspectiva jacobsiana, muito em voga durante a crise econômica dos anos 70 e 80. A presente exposição, por outro lado, pretende revisar essa leitura, lançando luz sobre a inteligência infra-estrutural do planejador. Esse é também o ponto de vista defendido pelo crítico Paul Goldberger nas páginas da "New Yorker" (5/2/2007), para quem é impossível não sentir hoje, em plena "era da participação", uma certa nostalgia pelo seu método de trabalho. Veja-se o caso do Ground Zero (terreno do World Trade Center), cujo destino é incerto há mais de cinco anos, dadas as disputas infinitas entre comunidades, comissões de planejamento, tribunais etc.
Para Nova York, Moses é o pai que virou "bode", e começa a ser recuperado. Já para nós, é impossível traduzir a complexidade dessa figura. Mal comparando, é como se o criador do parque D. Pedro tivesse, décadas depois, sufocado e retalhado a obra com sucessivas avenidas, alças e viadutos. Se assim fosse, talvez nós já tivéssemos sido capazes de demolir alguns "minhocões", na forma de um desrecalque necessário.


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