São Paulo, sábado, 19 de março de 2005

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LIVROS

ROMANCE

Livro vencedor do Booker Prize de 1972 ecoa movimento de maio de 68

Para "G.", de John Berger, a liberdade depende do desejo

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

"G.", vencedor do prestigioso Booker Prize de 1972, é o romance mais conhecido do inglês John Berger, escritor e crítico de arte de inspiração marxista, nascido em 1926. É um livro muito cioso das relações entre o indivíduo e o plano histórico, tanto que a vida privada do herói e os movimentos sociais a sua volta estão em permanente conexão ao longo de toda a narrativa, mesmo quando não há nenhuma ligação mais direta ou consciente entre eles.
G. é o filho bastardo de um rico comerciante italiano e de uma americana que se torna sua amante. O romance conta a saga do herói desde o nascimento até a morte, e sobretudo as suas experiências sexuais e amorosas, tendo como pano de fundo os grandes movimentos sociais na Europa do final do século 19 e início do século 20, passando pela revolta dos bôeres na África do Sul e chegando até a Primeira Guerra.
O entusiasmo romântico do comerciante italiano, por exemplo, quando descreve à amante americana a grandiosidade de um túnel, é logo contraposto à luz da intervenção histórica do narrador: "O túnel St. Gothard foi inaugurado em 1882. Oitocentos homens perderam a vida em sua construção".
Da mesma forma, as sublevações sociais e a imagem de um aviador pioneiro, que caiu depois de transpor a pior parte do seu desafio, a travessia aérea dos Alpes, em 1910, servem como contrapontos históricos para as conquistas amorosas e sexuais do protagonista.
Ecoando o momento em que foi escrito (entre o final dos anos 60 e o início dos 70), o romance defende a idéia de que a liberdade passa necessariamente pelo desejo. A maior contradição do burguês, segundo o narrador, é ansiar a liberdade (sexual e individual) que é o contrário da ordem de valores (sociais e morais) que ele precisa defender para a sua sobrevivência de privilegiado.
A revolução tem que levar em conta o desejo, que é alternativa ao mundo hierarquizado. Nesse sentido, John Berger termina por fazer a celebração da mulher como ideal: "Uma ereção é o início de um processo de idealização total". A mulher e o ato sexual seriam refratários às tentativas de representação da literatura. Neles estaria todo o mistério do que não pode ser descrito, do que é absolutamente singular: "Todas as generalizações se opõem à sexualidade".
O curioso é que Berger diz tudo o que se passa na cabeça dos personagens -e isso acaba deixando o leitor com a impressão de que a celebração do mistério e das singularidades é só da boca para fora. O narrador tem opinião sobre tudo e não perde nenhuma oportunidade para fazer reflexões sobre os sentimentos e as sensações dos personagens. Suas descrições psicológicas são minuciosas e precisas. Embora queira pintar as mulheres como seres misteriosos, revela tudo o que sentem, como se pudesse ver através delas. Ao contrário do que pontifica, não se vê opacidade no romance, só transparência. Seu discurso quer fazer o elogio do particular, só que por meio de generalizações, e do irrepresentável por meio de representações.


G.
   
Autor: John Berger
Tradução: Roberto Grey
Editora: Rocco
Quanto: R$ 38 (342 págs.)


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