São Paulo, quarta-feira, 19 de abril de 2000


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MARCELO COELHO

500 anos são macumba para turista

Pessoalmente não tenho nada contra o ministro Rafael Greca, mas acho saboroso o fato de que seja ele, meio com a corda no pescoço, o mestre de cerimônias na comemoração dos 500 anos do Descobrimento.
Trêfego, festeiro, dispensável e, sobretudo, cortesão, temos aqui uma espécie de Joãosinho Trinta do qual se eliminou o caráter popular; Greca representa o oficialismo em calças curtas. A frivolidade, talvez o maior defeito pessoal de Fernando Henrique, adquire em Greca um tom mais espontâneo, menos enrolador.
Pobre ministro! Os comentários políticos, como os relógios da rede Globo, fazem a contagem regressiva de sua permanência no cargo. É um Tiradentes no papel de rei Momo.
Não queria ser cruel. Acabei sendo um pouco; mas a mistura de Momo e Tiradentes talvez ilustre, sem que Rafael Greca esteja consciente disso, o espírito das comemorações.
Pois tudo o que há de trágico na história brasileira está sendo negado neste momento. Os portugueses enforcaram Tiradentes; nestes 500 anos, homenageamos os portugueses. Mas de forma muito pouco lusitana, isto é, pouco cerimoniosa, pouco ressentida.
Num Carnaval que só não é babaca por que sabe estar sendo babaca, celebra-se a identidade da raça, reúne-se um contingente de índios e caravelas, escreve-se sobre o assunto. O tema da culpa dos brancos é agitado -houve escravidão, houve massacres, sabemos-, mas é agitado como o chocalho de um índio charlatão, num exorcismo fictício. Isso é que é sincretismo.
Tenho vários pontos a comentar. O primeiro é a célebre miscigenação, o mito do país mestiço etc. Será que Brizola é mestiço? Ou Garotinho? Vá ao Gallery. Há algum mestiço ali?
Fora FHC -que brinca de ter pé na cozinha, mas tem a cabeça em Washington, como uma espécie de Macunaíma ao contrário, já que Macunaíma era branco só na sola dos pés-, onde estão os mestiços no poder? Reconheço em Malan um rosto de impassibilidade incaica, perdido em neves andinas; mas Fraga e Serra, ACM e José Gregori... onde está a nossa democracia racial? Em Inocêncio e Jader, talvez. Mas os mármores brancos de Brasília dominam a galeria das nossas efígies republicanas. No máximo, porque ninguém é de mármore, colorem-se de um barroco rubicundo: volto a Grecca e a Weffort.
O segundo ponto a comentar é que, em meio à falsidade da mestiçagem, dá-se o elogio de Portugal. A maior conclusão de todas as pesquisas em torno do Descobrimento tem sido, a meu ver, a de que os portugueses eram uma espécie de americanos; de que a Escola de Sagres (que nunca existiu) foi algo como o Silicon Valley do século 16. Vanguarda tecnológica da navegação.
Paradoxalmente, isso resulta em auto-estima para os brasileiros. Não fomos colonizados pela escória da Europa, mas por um povo inteligente.
Essa tentativa de nobilitação histórica pode ter raízes verdadeiras, mas não é inocente. O fato é que comemoramos 500 anos num momento de extrema desnacionalização da economia. Considerar Portugal uma vanguarda técnica em 1500 significa também aceitar a dominação americana no ano 2000. É fazer do Brasil, menos que um país, uma antena receptora de modernidades sucessivas.
Claro que, contra essa oculta ideologia da passividade, enfatiza-se a identidade nacional. O blablablá da especificidade brasileira. Sem isso, não haveria motivo para festas.
Ignora-se, entretanto, que globalização e ênfase na identidade nacional não são termos excludentes. Qualquer produto "étnico" vende bem no mercado de discos, por exemplo. A homogeneização prejudica a indústria cultural; de Zé Carioca a Aladin, a Disney sabe disso.
O importante, pois, é fazer da "brasilidade" um espetáculo inócuo e apto ao consumo. O turismo é uma das grandes indústrias hoje em dia. CDs de Caymmi ou de Marisa Monte vendem bem em Bruxelas e Vancouver.
Nós mesmos, brasileiros pouco ou nada mestiços, consumimos o Brasil turisticamente. Há um derretimento tropical de nossa parte diante da opressão estrangeira, porque assim se açucara a opressão nacional sobre o povo feliz que oprimimos.
No fundo, todo o festejo em torno da "nacionalidade" é exatamente simétrico ao fato de não haver projeto nacional em curso. Se os 500 anos do Brasil estivessem sendo comemorados em 1960, por exemplo, o tema da industrialização apareceria de modo épico, com seus mártires, utopias etc.
Que aquele projeto -o da industrialização- foi falso, não preciso dizer. Acentuou nossa dependência externa. O resultado é que comemoramos os 500 anos como se não fosse problema nosso. Pura macumba para turista. Os turistas somos nós mesmos; nada melhor do que um ministro do Turismo para celebrá-la.


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