São Paulo, sexta-feira, 19 de abril de 2002

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O contador de histórias

Marcus Antonius/Folha Imagem
Ravi Ramos Lacerda, 14, ator do longa-metragem "Abril Despedaçado", em João Pessoa, onde nasceu e vive



Ravi Ramos Lacerda, 14, que protagoniza o longa "Abril Despedaçado", de Walter Salles, ganha a vida mambembando


SILVANA ARANTES
ENVIADA ESPECIAL A JOÃO PESSOA (PB)

"Por favor, me acorde para as refeições." O adesivo usado em vôos internacionais decora a porta do quarto de Ravi Ramos Lacerda, 14.
O apartamento de dois dormitórios -num dos blocos do condomínio Verde Vale, no Conjunto Geisel, periferia de João Pessoa (PB)- e as viagens para fora do país ele conquistou com seu trabalho como Pacu.
Caçula da fictícia família Breve, Pacu é quem narra o drama de "Abril Despedaçado", quinto longa de Walter Salles. O título -que foi o candidato do Brasil à indicação para o Oscar de melhor filme estrangeiro- estréia no país em 3 de maio, depois de várias participações em festivais estrangeiros, iniciadas com a disputa pelo Leão de Ouro em Veneza, em setembro passado. Para a Itália, a Alemanha e a Suíça, Ravi viajou com o filme.
O irônico do lembrete que pousou na porta de seu quarto é que Ravi desconhece o que seja esperar dormindo para que uma refeição chegue à mesa. Desde os sete anos, trabalha para ajudar a garantir a feira, o gás, o mês.
Sempre ao lado da mãe, a atriz Dhyan Urshita Lacerda, 34, que o criou sozinha, ele aprendeu a encarar platéias de cima de um palco ou a conquistá-las na marra, em praça pública. Nesses casos, é também função sua "passar o chapéu" ao final da apresentação, recolhendo a expressão do agradecimento do espectador.
São dois os espetáculos que montaram em parceria, cada um desenvolvendo seu próprio personagem. Quando ela é "Lazarina, a Última Mulher de Lampião", ele é Charlie Chaplin. Quando ela é "Pernambuco, um Mendigo Verdadeiro", ele é Michael Jeca, pastiche do ícone pop, com direito ao requebrado break.
Mas Dhyan trabalha também como profissional "alternativa" para assegurar uma renda mensal de aproximadamente R$ 200. "Aprendi até a adivinhar para criar o meu filho", diz. E, quando ela arma a barraca de tarô, Ravi está lá. É seu assistente.

Truque
O traquejo com o público serviu de nada na hora de filmar. "Truque de ator, no cinema, não funciona", concluiu o garoto, num momento em que se sentiu frágil para transpor duas dificuldades. "Se eu decorasse o texto, empacava. Só saía de uma maneira. E também não conseguia contracenar. Quando era o meu take, tudo bem. No do outro, nada."
Para o primeiro problema, a solução foram os ensaios com o colega de elenco Luiz Carlos Lacerda, um dos fundadores do paraibano circo e escola Piollin, onde foram realizados os testes em que Ravi foi selecionado.
"A gente ensaiava uns três dias antes de filmar a cena, e ele viu que eu não podia decorar. Tinha que sentir como o personagem sente", conta Ravi.
Para chegar ao ponto em que contracenar tornou-se uma prática natural, contou muito a dedicação de Rodrigo Santoro que, no papel de Tonho, irmão de Pacu, era o mais prejudicado com a limitação inicial de Ravi.
Hoje, o ator paraibano, um apaixonado por esportes radicais, treina suas primeiras manobras de surfe na prancha em que Santoro aprendeu a dominar o esporte. Presente de um para o outro. Pura "brodagem".
Outros laços estabelecidos nos dois meses de filmagens se mantêm. Ravi cogita convidar o assistente de direção Sérgio Machado para ser seu padrinho. "É que até hoje não fui batizado. Só tenho o batismo de fogueira."
De José Dumont, o patriarca dos Breves, ele guardou as falas -"Não sou bom em matemática, mas, quando "pego o risco", eu vou- e a admiração. Dumont e Tony Ramos são os atores que Ravi mais respeita. Por quê? Porque acha que são famosos exclusivamente pela qualidade do trabalho que fazem, não pela aparência.

Fama
Da fama calcada na beleza, Ravi tem "horror". A mãe do ator acha que a opinião do filho não poderia ser mais coerente: "Eu sou do povo. Ele não pode negar suas origens. No lugar em que eu nasci [Conceição de Caiacó", a gente sabia que, se chovesse, teria algodão, e, no fim do ano, a gente poderia ir à quermesse. Se não chovesse, a gente ia comer raiz. Num país pobre que nem este, ser galã é uma ilusão, afasta do povo".
A ojeriza à fama gratuita já foi percebida na Escola Cenecista João Régis Amorim, onde Ravi repete a sexta série, perdida no ano passado.
Quando o "Correio da Paraíba" publicou reportagem sobre o Leãozinho de Ouro (prêmio do público jovem) obtido em Veneza, a diretora quis grudar a folha no mural. Ravi não permitiu. "Quero que possam ver o meu trabalho primeiro, e não pensem que só quero ser famoso", explica.


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