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CINEMA/ESTRÉIA
Delírio em Hollywood
Divulgação
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Cena de "Cidade dos Sonhos", do americano David Lynch, também diretor de "Veludo Azul", "A Estrada Perdida" e "História Real" |
Em "Cidade dos Sonhos", Lynch discute a perda de identidade e mistura o real com o imaginário
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INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
A reação do espectador ao
sair da "Cidade dos Sonhos"
pode ser de espanto: será que eu
me distraí, perdi algum momento
essencial da trama e agora já não
sei quem é quem nessa história?
Ou pode ser de desconfiança:
querem que eu engula esse bricabraque sem pé nem cabeça como
se fosse obra de arte.
Em ambas as hipóteses (não são
as únicas possíveis), o sentimento
que se tem ao final da sessão não
elimina todos os outros que acontecem durante os 145 minutos de
projeção, onde cada cena, cada
palavra e cada gesto nos conduzem a um mistério. E cada cena,
palavra ou gesto é imediatamente
compreensível.
Vejamos: um desastre automobilístico acontece em Mulholland
Drive, justamente no momento
em que uma mulher vai ser assassinada. Ela escapa razoavelmente
ilesa, mas, tendo perdido a memória, não sabe quem é nem o
que aconteceu. Dará a si mesma o
nome de Rita (após ver um cartaz
de Rita Hayworth em "Gilda").
Rita se verá na casa de Camilla
Rhodes, jovem pretendente a
atriz, que irá ajudá-la a desvendar
o mistério de sua identidade.
Mais tarde saberemos que Rita
na verdade se chama Camilla e
que Camilla se chama Betty, se
não me falha a memória. De todo
modo isso não tem importância
por ora, mesmo porque o espectador se verá soterrado por uma
série de acontecimentos não menos ambíguos: um diretor de cinema perseguido por (talvez)
gângsteres, um teste para Camilla
(Betty), figuras ameaçadoras que
perseguem Rita (ou Camilla), um
assassino profissional, alguém
que se denomina Cowboy etc.
Pode-se fazer, mentalmente, a
tentativa de remontar esse filme
tentando encontrar-lhe a cronologia correta. É inútil. "Cidade dos
Sonhos" nos precipita em um território perigoso, onde real e imaginário são, a rigor, indistinguíveis, inseparáveis, onde não é possível saber, nunca, o que está
acontecendo, o que está sendo filmado, o que está sendo sonhado
ou imaginado.
Mesmo nas cenas mais banais,
David Lynch cerca seus atores de
um halo de mistério, como se os
imaterializasse para melhor mostrar que não estamos vendo pessoas de carne e osso, e sim algo
apenas parecido com ela, isto é,
um filme (exemplo: a chegada da
candidata a atriz em Hollywood
-sim, escusa dizer, tudo isso se
passa em Hollywood).
Somos em seguida projetados
no mistério de Rita e nos que a
cercam. David Lynch então conduz seu filme como um mistério
hitchcockiano (um dos temas recorrentes de Hitchcock é a busca
da identidade e seus perigos).
Num café, as duas moças topam
com uma garçonete chamada
Diane. Ela tem o nome estampado no crachá (bem à moda americana). Esse nome evoca algo para
Rita. Talvez seu nome seja esse.
Não importa se é ou não, mas o
efeito que a cena tem sobre o espectador, imediatamente levado a
questionar o que significa um nome. Que diferença existe no fato
de um crachá mencionar A, B ou
C? Quem é essa pessoa que nunca
vimos antes e que provavelmente
não voltaremos a ver? E, se nosso
contato com ela é assim tão sumário, por que devemos conhecer-lhe o nome?
Da mesma forma, que nome dar
a isso que vemos: alucinação, sonho, realidade, filme? Há um pouco de tudo, talvez porque o cinema seja, em parte, uma arte que
materializa o imaterial, que transforma idéias em coisas reais. É a
isso que nos acostumamos. É isso
que esperamos de um filme.
Lynch parece propor algo diferente: imaterializar o material, devolvê-lo ao estágio de idéia, o que
consegue ao nos envolver na suposição de estarmos diante de
uma ficção tradicional (com a segurança e o conforto de sabermos
que vemos uma história).
Esses movimentos opostos desconcertam o espectador, tirando-lhe o que mais preza, a certeza.
Porque é num mundo de plena
incerteza que nos projeta esse filme, em que a angústia dos personagens parece se dissipar junto
com suas identidades (ou perda
de identidades) e se transferir para o público.
"Cidade dos Sonhos" afirma
David Lynch como herdeiro legítimo (isto é, inventivo, não imitador) dos grandes mestres do cinema de mistério (Hitchcock e Buñuel sobretudo), que fizeram
questões como quem somos nós,
o que é real, o que é o cinema sempre presentes em sua obra.
Por fim, mas não por último:
também está em cartaz "Cine Majestic", de Frank Darabont, outro
filme que faz da perda de identidade seu tema central. Talvez seja
coincidência, talvez sinal de uma
crise de identidade profunda que
os EUA estão vivendo.
Cidade dos Sonhos
Mulholland Drive
Direção: David Lynch
Produção: EUA/França, 2001
Com: Justin Theroux, Naomi Watts,
Laura Harring
Quando: a partir de hoje nos cines Belas
Artes, Jardim Sul, Metrô Santa Cruz, Sala
UOL e circuito
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