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CARTAS DA EUROPA
O americano intranqüilo
JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA
Aterrei nos Estados Unidos, pela primeira vez, uns
anos atrás. Fiquei pasmo com fato inesperado: a simpatia dos
americanos. À época, não tinha
ainda lido Tocqueville e não podia concordar com o sábio francês
que, já em 1831, notara como uma
sociedade civil forte promovia
virtudes sociais fortes. Afabilidade. Simpatia. Cortesia. Eu chegava da Europa. E, na Europa, acreditem, ninguém é simpático com
ninguém. Deve ser o velho "rapport" feudal que impede qualquer
empregado de café de ser prestável para qualquer cliente de café.
"Servir" é verbo indigno. "Agredir", não. Na Europa, e sobretudo
em Paris, você se senta num bistrô
e é tratado aos pontapés. É o velho charme europeu, de que os
americanos não partilham.
Em Chicago, havia sempre um
sorriso e um cumprimento matinal. E a pergunta, obviamente retórica, de saber se a vida rolava.
Confesso: tanta alegria, às vezes,
deprime. E o excesso de energia
cansa. Mas, quando se aterra nos
Estados Unidos, a primeira coisa
que se enterra é o clichê do americano arrogante.
Infelizmente, o mundo não concorda. Sobretudo o mundo que
nunca foi aos Estados Unidos,
mas gosta sempre de dissertar sobre as qualidades dos indígenas.
Aliás, não apenas o mundo: o
próprio governo americano está
seriamente preocupado com a
imagem dos seus cidadãos no estrangeiro e resolveu editar um pequeno livro com 16 conselhos essenciais para civilizar os selvagens. O americano pede o passaporte e recebe sermão grátis para
não horrorizar o europeu. De
acordo com Washington, o americano no estrangeiro deve: falar
baixo; ouvir muito; não "moralizar" em excesso; mostrar interesse
pela cultura local; andar devagar,
comer devagar e, presumo, pensar devagar; não discutir religião;
não discutir política; não discutir
desporto; não discutir e ponto;
não usar bermudas; não usar boné de beisebol; aprender o dialeto
local. No fundo, fazer uma lobotomia prévia e cruzar o Atlântico
na condição de débil mental.
Não me oponho a esse circo.
Mas, no meu estatuto de europeu
"refinado", talvez não seja má
idéia avisar: a imagem que a Europa tem dos americanos não é
real. É política. E não se altera
com livro de boas maneiras para
ler no avião.
Começa por ser uma imagem
política no sentido mais lato e histórico do termo: desde a fundação
dos Estados Unidos, a Europa insiste e persiste em alimentar uma
sobranceria patética em relação à
antiga colônia. O Novo Mundo,
aos olhos do Velho, era um espaço
de degenerescência física e moral,
sem os múltiplos refinamentos de
um concerto em Salzburgo ou de
um salão em Paris. Nietzsche e
seus seguidores gostavam de repetir a tese: o gosto americano pelo
mais reles materialismo era repulsivo aos olhos do europeu cultivado. A Europa produzia cultura; os americanos, coitados, tinham a mentalidade própria dos
filistinos: adoradores do metal e
escravos dele, incapazes de apreciar a beleza intangível da vida
intelectual. Curiosamente,
Nietzsche não sobreviveu para assistir aos prodígios que a "vida intelectual" acabaria por oferecer à
Europa no século 20.
Mas a imagem é também política no sentido mais estrito e imediato: talvez Washington não
goste da palavra. Mas ser um
"império" não é uma questão de
gramática. É uma questão de poder militar, econômico e cultural.
O "espírito do tempo", para usar
a linguagem de outro alemão célebre, mora do outro lado do
oceano. E, enquanto o "espírito"
estiver em Washington, e não em
Bruxelas, os americanos serão
sempre arrogantes, ou vulgares,
ou rudes, ou incultos, ou antipáticos, ou imorais, ou monstruosos.
É a velha síndrome do caseiro invejoso que namora as pratas do
senhor enquanto o insulta pelas
costas.
Que a Europa acredite nas suas
fantasias, eis um fato que não incomoda uma única pessoa lúcida.
Mas que o próprio governo americano esteja disposto a marchar
na paranóia, eis a confirmação de
que a loucura é leve e voa depressa como o vento.
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