São Paulo, quarta-feira, 19 de abril de 2006

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CARTAS DA EUROPA

O americano intranqüilo

JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA

Aterrei nos Estados Unidos, pela primeira vez, uns anos atrás. Fiquei pasmo com fato inesperado: a simpatia dos americanos. À época, não tinha ainda lido Tocqueville e não podia concordar com o sábio francês que, já em 1831, notara como uma sociedade civil forte promovia virtudes sociais fortes. Afabilidade. Simpatia. Cortesia. Eu chegava da Europa. E, na Europa, acreditem, ninguém é simpático com ninguém. Deve ser o velho "rapport" feudal que impede qualquer empregado de café de ser prestável para qualquer cliente de café. "Servir" é verbo indigno. "Agredir", não. Na Europa, e sobretudo em Paris, você se senta num bistrô e é tratado aos pontapés. É o velho charme europeu, de que os americanos não partilham.
Em Chicago, havia sempre um sorriso e um cumprimento matinal. E a pergunta, obviamente retórica, de saber se a vida rolava. Confesso: tanta alegria, às vezes, deprime. E o excesso de energia cansa. Mas, quando se aterra nos Estados Unidos, a primeira coisa que se enterra é o clichê do americano arrogante.
Infelizmente, o mundo não concorda. Sobretudo o mundo que nunca foi aos Estados Unidos, mas gosta sempre de dissertar sobre as qualidades dos indígenas. Aliás, não apenas o mundo: o próprio governo americano está seriamente preocupado com a imagem dos seus cidadãos no estrangeiro e resolveu editar um pequeno livro com 16 conselhos essenciais para civilizar os selvagens. O americano pede o passaporte e recebe sermão grátis para não horrorizar o europeu. De acordo com Washington, o americano no estrangeiro deve: falar baixo; ouvir muito; não "moralizar" em excesso; mostrar interesse pela cultura local; andar devagar, comer devagar e, presumo, pensar devagar; não discutir religião; não discutir política; não discutir desporto; não discutir e ponto; não usar bermudas; não usar boné de beisebol; aprender o dialeto local. No fundo, fazer uma lobotomia prévia e cruzar o Atlântico na condição de débil mental.
Não me oponho a esse circo. Mas, no meu estatuto de europeu "refinado", talvez não seja má idéia avisar: a imagem que a Europa tem dos americanos não é real. É política. E não se altera com livro de boas maneiras para ler no avião.
Começa por ser uma imagem política no sentido mais lato e histórico do termo: desde a fundação dos Estados Unidos, a Europa insiste e persiste em alimentar uma sobranceria patética em relação à antiga colônia. O Novo Mundo, aos olhos do Velho, era um espaço de degenerescência física e moral, sem os múltiplos refinamentos de um concerto em Salzburgo ou de um salão em Paris. Nietzsche e seus seguidores gostavam de repetir a tese: o gosto americano pelo mais reles materialismo era repulsivo aos olhos do europeu cultivado. A Europa produzia cultura; os americanos, coitados, tinham a mentalidade própria dos filistinos: adoradores do metal e escravos dele, incapazes de apreciar a beleza intangível da vida intelectual. Curiosamente, Nietzsche não sobreviveu para assistir aos prodígios que a "vida intelectual" acabaria por oferecer à Europa no século 20.
Mas a imagem é também política no sentido mais estrito e imediato: talvez Washington não goste da palavra. Mas ser um "império" não é uma questão de gramática. É uma questão de poder militar, econômico e cultural. O "espírito do tempo", para usar a linguagem de outro alemão célebre, mora do outro lado do oceano. E, enquanto o "espírito" estiver em Washington, e não em Bruxelas, os americanos serão sempre arrogantes, ou vulgares, ou rudes, ou incultos, ou antipáticos, ou imorais, ou monstruosos. É a velha síndrome do caseiro invejoso que namora as pratas do senhor enquanto o insulta pelas costas.
Que a Europa acredite nas suas fantasias, eis um fato que não incomoda uma única pessoa lúcida. Mas que o próprio governo americano esteja disposto a marchar na paranóia, eis a confirmação de que a loucura é leve e voa depressa como o vento.


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