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Crítica/Charles Aznavour
Ainda é uma dádiva ouvir Aznavour, o Monsieur Charm
Em sua turnê de despedida, mestre francês leva quase 3.000 ao Via Funchal sem esconder paixão pela música
ZUZA HOMEM DE MELLO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A real distinção entre
uma ária da música lírica e uma canção popular reside na letra. Na ópera, a
letra é parte de uma trama ao
passo que a poesia da canção
popular conta uma história,
contém uma mensagem quase
sempre romântica, eventualmente ecológica, não importa.
Como me afirmou Geraldo
Vandré num depoimento em
1968, "em canção popular, a
música deve ser uma funcionária despudorada do texto". Não
foi à toa que o maior chansonnier francês vivo, Charles Aznavour, declarou na entrevista
coletiva em São Paulo ser um
letrista, um escritor que veste
as canções com palavras.
O que não o impede de ser
também bom melodista. Basta
cantarolar sua composição "La
Bohème", o penúltimo número
do espetáculo que ficará na memória dos quase 3.000 privilegiados que lotaram o Via Funchal na última quinta-feira.
Como os milhares de franceses que acorreram em outubro
último ao Palais de Congrès de
Paris, onde era anunciada a
temporada de sua despedida
dos palcos, aqui ocorre o mesmo. Aos 83 anos, Aznavour
anuncia que não mais pretende
excursionar. No entanto, o vigor com que canta e se desempenha parece demonstrar que
não se deve confiar nesse projeto de vida.
"Aznavoice" está em plena
forma com seu timbre ligeiramente arranhado e a dose de vibrato que são uma marca.
Baixinho elegante
Antes mesmo da introdução
à primeira canção, "Le Temps",
(com um grupo de sete músicos
e duas cantoras das quais uma é
sua filha Katia Aznavour), o
baixinho de 1,60 m entra pelo
lado direito, trajado em negro,
caminha com elegância e suavidade em direção ao centro do
palco, seu habitat de trabalho,
para dar início ao espetáculo
recheado das canções que a
maioria na platéia reconhece.
Descreve a origem de algumas
delas com a autoridade de autor e a intimidade de um pai,
cantando-as sem esforço, incitado pelo domínio com que desempenha a arte que teceu ao
longo de sua vida.
Monsieur Charm é um mestre no palco. Com gestos discretos e envolventes, usa o tempo e o espaço com tal pertinência que poderia prescindir da
impressionante profusão de
poesias que escreveu para as
canções de seu "superbe" repertório e, ainda assim, estaria
dando uma aula de interpretação vocal. Para acompanhá-los
valeria, permitido fosse, uma
câmera cinematográfica captando exclusivamente a expressividade de suas mãos, que
vai do delicado ao cortante, da
candura ao inflamado, uma
Master Class para cantores,
aprendizes e diplomados.
No momento certo, recua até
a coxia e retorna dançando
consigo mesmo, envolvendo-se
com o braço esquerdo pelo ombro direito enquanto oculta o
microfone com o outro braço
para interpretar o célebre fox
"Les Plaisirs Démodés", que
conquistou o mundo e impulsiona casais a dançarem "cheek
to cheek", neste caso, "joue
contre joue": "Viens découvrons toi et moi / les plaisirs démodés / Ton coeur contre mon
coeur / malgré les rythmes fous
/ Je veux sentir mon corps / par
ton corps épousé / Dansons
joue contre joue ...". Aznavour é
impressionante como autor, é
absoluto como cantor.
Assumindo cada canção, interpreta vigorosamente ao longo do espetáculo "Paris au Mois
d'Août", "Désormais", "She",
"Que C'est Triste Venice",
"Non Je N'ai Rien Oublié",
"Ave Maria", "Il Faut Savoir",
"Hier Encore". Some na coxia
depois de receber um buquê de
flores, saindo após o bis, uma
recente canção em língua espanhola, "El Barco Ya Se Fue". O
público aplaude como quem recebe uma dádiva. E é mesmo
uma dádiva ouvir Aznavour.
Será que ele volta? Não se duvide, Aznavour é apaixonado
pelo que faz.
ZUZA HOMEM DE MELLO é historiador, musicólogo e crítico musical.
CHARLES AZNAVOUR
Avaliação: ótimo
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