São Paulo, sábado, 19 de abril de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Crítica/Charles Aznavour

Ainda é uma dádiva ouvir Aznavour, o Monsieur Charm

Em sua turnê de despedida, mestre francês leva quase 3.000 ao Via Funchal sem esconder paixão pela música

ZUZA HOMEM DE MELLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A real distinção entre uma ária da música lírica e uma canção popular reside na letra. Na ópera, a letra é parte de uma trama ao passo que a poesia da canção popular conta uma história, contém uma mensagem quase sempre romântica, eventualmente ecológica, não importa.
Como me afirmou Geraldo Vandré num depoimento em 1968, "em canção popular, a música deve ser uma funcionária despudorada do texto". Não foi à toa que o maior chansonnier francês vivo, Charles Aznavour, declarou na entrevista coletiva em São Paulo ser um letrista, um escritor que veste as canções com palavras.
O que não o impede de ser também bom melodista. Basta cantarolar sua composição "La Bohème", o penúltimo número do espetáculo que ficará na memória dos quase 3.000 privilegiados que lotaram o Via Funchal na última quinta-feira.
Como os milhares de franceses que acorreram em outubro último ao Palais de Congrès de Paris, onde era anunciada a temporada de sua despedida dos palcos, aqui ocorre o mesmo. Aos 83 anos, Aznavour anuncia que não mais pretende excursionar. No entanto, o vigor com que canta e se desempenha parece demonstrar que não se deve confiar nesse projeto de vida.
"Aznavoice" está em plena forma com seu timbre ligeiramente arranhado e a dose de vibrato que são uma marca.

Baixinho elegante
Antes mesmo da introdução à primeira canção, "Le Temps", (com um grupo de sete músicos e duas cantoras das quais uma é sua filha Katia Aznavour), o baixinho de 1,60 m entra pelo lado direito, trajado em negro, caminha com elegância e suavidade em direção ao centro do palco, seu habitat de trabalho, para dar início ao espetáculo recheado das canções que a maioria na platéia reconhece.
Descreve a origem de algumas delas com a autoridade de autor e a intimidade de um pai, cantando-as sem esforço, incitado pelo domínio com que desempenha a arte que teceu ao longo de sua vida.
Monsieur Charm é um mestre no palco. Com gestos discretos e envolventes, usa o tempo e o espaço com tal pertinência que poderia prescindir da impressionante profusão de poesias que escreveu para as canções de seu "superbe" repertório e, ainda assim, estaria dando uma aula de interpretação vocal. Para acompanhá-los valeria, permitido fosse, uma câmera cinematográfica captando exclusivamente a expressividade de suas mãos, que vai do delicado ao cortante, da candura ao inflamado, uma Master Class para cantores, aprendizes e diplomados.
No momento certo, recua até a coxia e retorna dançando consigo mesmo, envolvendo-se com o braço esquerdo pelo ombro direito enquanto oculta o microfone com o outro braço para interpretar o célebre fox "Les Plaisirs Démodés", que conquistou o mundo e impulsiona casais a dançarem "cheek to cheek", neste caso, "joue contre joue": "Viens découvrons toi et moi / les plaisirs démodés / Ton coeur contre mon coeur / malgré les rythmes fous / Je veux sentir mon corps / par ton corps épousé / Dansons joue contre joue ...". Aznavour é impressionante como autor, é absoluto como cantor.
Assumindo cada canção, interpreta vigorosamente ao longo do espetáculo "Paris au Mois d'Août", "Désormais", "She", "Que C'est Triste Venice", "Non Je N'ai Rien Oublié", "Ave Maria", "Il Faut Savoir", "Hier Encore". Some na coxia depois de receber um buquê de flores, saindo após o bis, uma recente canção em língua espanhola, "El Barco Ya Se Fue". O público aplaude como quem recebe uma dádiva. E é mesmo uma dádiva ouvir Aznavour.
Será que ele volta? Não se duvide, Aznavour é apaixonado pelo que faz.
ZUZA HOMEM DE MELLO é historiador, musicólogo e crítico musical.


CHARLES AZNAVOUR
Avaliação: ótimo



Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Crítica/Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo: Com segurança, quarteto visita a tradição
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.