São Paulo, sábado, 19 de abril de 2008

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Cartas a Elizabeth Bishop revelam veia irônica

DO CRÍTICO DA FOLHA

Flannery O'Connor morreu com apenas 39 anos, vítima de lúpus eritematoso, doença auto-imune feia e sofrida, que já havia matado seu pai e a fez viver isolada durante muito anos em sua fazenda de laticínios, junto com a mãe, no interior da Geórgia.
De lá manteve correspondência com a poeta Elizabeth Bishop (1911-1979), que vivia então no Rio de Janeiro. Flannery fez vários convites para que Elizabeth a visitasse na propriedade rural "a algumas milhas de Milledgeville". A poeta nunca foi. Em uma carta posterior, enviada a Robert Giroux, ela lamenta não tê-la visitado, para depois confessar, entre parênteses: "Acho que eu tinha "medo" da Flannery!".
As cartas de Flannery a Elizabeth revelam a veia irônica da primeira, sem a sombra trágica ou violenta que há em suas histórias. Talvez até porque, como ela diz, "a maior parte da violência levada às suas conclusões lógicas nos contos consegue ser evitada aqui [em sua fazenda]".
Flannery O'Connor descreve com humor seu provincianismo ("Os contos são, agora, mais viajados do que eu") e a recepção da crítica. Diz que mal reconheceu um conto seu examinado pelo italiano Mario Praz, "mas de todo modo [ele] pareceu saber do que se tratava e o aprovou".
Sua reclusão foi rompida algumas vezes, como em sua primeira e única viagem à Europa. Foi quando se deu conta de que as muletas "foram uma grande aquisição", pois lhe davam a prerrogativa de embarcar primeiro em todos os aviões.

Sátira fina
O episódio de sua ida a Lourdes é um primor da sátira fina: "Alguém me disse em Paris que o milagre de Lourdes é que não haja epidemia [...]. Eles passaram uma garrafa de água termal e todos beberam do gargalo. Eu estava com um resfriado terrível, de modo que acho que passei mais germes que peguei [...]. O sobrenatural ali é um fato, mas não em substituição a algo natural; excetuando-se talvez aqueles germes".
Por fim, as cartas também mostram que Flannery não vivia tão apartada como se pensa da roda literária. Era por exemplo amiga do poeta Robert Lowell e ficou hospedada em uma ocasião na residência de outro, Robert Fitzgerald -ambos igualmente amigos de Elizabeth Bishop.
Ela empenhou-se, sem sucesso, para que esta fosse convidada a dar palestras em uma faculdade metodista: "Eles querem trazer Eliot no ano que vem. Tom Gosset, o que faz os convites, me disse que precisou explicar com bastante cuidado ao reitor quem era Eliot". (MP)


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