São Paulo, sábado, 19 de abril de 2008

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Livros - Crítica/"A Saúde Pública no Rio de Dom João"

Atual, texto médico de 1808 é relançado

Na obra, o doutor Vieira da Cunha tece considerações sobre falsificação de remédios, hospitais lotados e outros temas "contemporâneos"

EDUARDO BUENO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sob o zunzum das acusações mútuas e o zumbido conspícuo da incompetência, o mosquito da dengue segue abrindo suas asas sobre o Rio de Janeiro, como os braços do cartão-postal. Mas justiça seja feita: nos cem anos que se passaram desde a primeira grande guerra contra o inseto (1904-1908), algumas coisas se modificaram.
As brigadas mata-mosquitos, por exemplo, deram lugar às milícias mata-tudo; os "tigres" (escravos que carregavam barris de excrementos) foram substituídos pelos "gatos", e o próprio mosquito, antes chamado Stegomyia fasciata, mudou de nome e, nos cartazes de "procura-se", atende agora por Aedes aegypti. Além disso, já não transmite (pelo menos não no Rio) a febre amarela, mas a doença que, quando não mata, deixa o infectado, digamos, "dengoso".
Para quem tem uma breve noção de quando se iniciou e de que forma foi travada a luta pelo saneamento do Rio, a sensação de que a história do Brasil revoa em círculos, como um mosquito desnorteado, se impõe inevitável. Se efemérides têm alguma utilidade, servem para que nelas se "comemore" -ou seja , rememore-se coletivamente- de que forma a história avança ou tropeça.
Não restam dúvidas de que a chegada da família real, ocorrida há exatos 200 anos, estabeleceu uma guinada (também) na área da saúde pública do Brasil -na do Rio, em particular. E é evidente que, se as determinações então sugeridas pelos conselheiros de d. João 6º tivessem sido cumpridas, Oswaldo Cruz não precisaria virar o czar dos mosquitos cem anos mais tarde; nem, passados dois séculos, o pobre Luciano Huck, após ter um Rolex surrupiado em São Paulo, iria contrair dengue no Rio.
Há 200 anos, um dos previdentes conselheiros do príncipe-regente d. João era o doutor Manoel Vieira da Cunha. É de sua lavra o opúsculo "Reflexões sobre Alguns dos Meios Propostos por Mais Conducentes para Melhorar o Clima da Cidade do Rio de Janeiro" (1808), tido como o primeiro texto médico publicado no Brasil.
O livrinho, de apenas 14 páginas, acaba de ser relançado, com prefácio de Moacyr Scliar, seguido pelos prolegômenos que o médico pernambucano Domingos Ribeiro dos Guimarães Peixoto redigiu em 1820. Ambos os textos, embora ainda atrelados à "teoria miasmática" -segundo a qual as doenças seriam provocadas por "miasmas" ou emanações malignas provenientes do solo, da água ou do ar "estagnados"-, apresentavam sugestões absolutamente razoáveis e factíveis.
Mas elas ficaram no papel -menos, é claro, a mais desnecessária delas: a que propunha o arrasamento do "nocivo" Morro do Castelo, onde a cidade nascera. No país das chances desperdiçadas, os 500 anos do descobrimento passaram quase em negras nuvens. Os 200 anos do desembarque da família real estão recebendo tratamento mais condigno, e os livros publicados sob os auspícios da comissão dirigida pelo historiador Alberto da Costa e Silva são de qualidade.
Que as reflexões do doutor Vieira da Cunha e os prolegômenos do doutor Peixoto tenham sido reunidos e relançados (sob o título "A Saúde Pública no Rio de Dom João") é uma boa iniciativa -embora, de certo modo, configure mais uma oportunidade mal aproveitada. O assunto, afinal, renderia bem mais do que o prefácio de Scliar; e "espaço" para mais reflexões não faltava, tanto que, das 118 páginas do livro, 50 são preenchidas por ilustrações, quase todas de Debret.
Os conceitos defendidos pelos conselheiros estão desatualizados, mas o que dizer dos temas tratados por eles? Medicamentos falsificados, hospitais lotados, descaso público e desleixo privado, charlatanismo, "abuso de liquores espirituosos, de bebidas fermentadas e dos prazeres de Vênus", lixo nas ruas e... proliferação de mosquitos. Velho chavão: povo que não conhece sua história fica que nem mosca tonta. Moral da história: não basta mudar o nome dos mosquitos. É preciso dar nome aos bois.
EDUARDO BUENO é autor de "À Sua Saúde - A Vigilância Sanitária na História do Brasil" (ed. da Anvisa) e "Náufragos, Traficantes e Degredados" (ed. Objetiva), entre outros


A SAÚDE PÚBLICA NO RIO DE DOM JOÃO
Autores: Manoel Vieira da Silva e Domingos Ribeiro dos Guimarães Peixoto
Editora: Senac Rio
Quanto: R$ 29,90 (120 págs.)
Avaliação: bom



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