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Livros - Crítica/"A Saúde Pública no Rio de Dom João"
Atual, texto médico de 1808 é relançado
Na obra, o doutor Vieira da Cunha tece considerações sobre falsificação de remédios, hospitais lotados e outros temas "contemporâneos"
EDUARDO BUENO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Sob o zunzum das acusações mútuas e o zumbido
conspícuo da incompetência, o mosquito da dengue
segue abrindo suas asas sobre o
Rio de Janeiro, como os braços
do cartão-postal. Mas justiça
seja feita: nos cem anos que se
passaram desde a primeira
grande guerra contra o inseto
(1904-1908), algumas coisas se
modificaram.
As brigadas mata-mosquitos,
por exemplo, deram lugar às
milícias mata-tudo; os "tigres"
(escravos que carregavam barris de excrementos) foram
substituídos pelos "gatos", e o
próprio mosquito, antes chamado Stegomyia fasciata, mudou de nome e, nos cartazes de
"procura-se", atende agora por
Aedes aegypti. Além disso, já
não transmite (pelo menos não
no Rio) a febre amarela, mas a
doença que, quando não mata,
deixa o infectado, digamos,
"dengoso".
Para quem tem uma breve
noção de quando se iniciou e de
que forma foi travada a luta pelo saneamento do Rio, a sensação de que a história do Brasil
revoa em círculos, como um
mosquito desnorteado, se impõe inevitável. Se efemérides
têm alguma utilidade, servem
para que nelas se "comemore"
-ou seja , rememore-se coletivamente- de que forma a história avança ou tropeça.
Não restam dúvidas de que a
chegada da família real, ocorrida há exatos 200 anos, estabeleceu uma guinada (também)
na área da saúde pública do
Brasil -na do Rio, em particular. E é evidente que, se as determinações então sugeridas
pelos conselheiros de d. João
6º tivessem sido cumpridas,
Oswaldo Cruz não precisaria
virar o czar dos mosquitos cem
anos mais tarde; nem, passados
dois séculos, o pobre Luciano
Huck, após ter um Rolex surrupiado em São Paulo, iria contrair dengue no Rio.
Há 200 anos, um dos previdentes conselheiros do príncipe-regente d. João era o doutor
Manoel Vieira da Cunha. É de
sua lavra o opúsculo "Reflexões
sobre Alguns dos Meios Propostos por Mais Conducentes
para Melhorar o Clima da Cidade do Rio de Janeiro" (1808),
tido como o primeiro texto médico publicado no Brasil.
O livrinho, de apenas 14 páginas, acaba de ser relançado,
com prefácio de Moacyr Scliar,
seguido pelos prolegômenos
que o médico pernambucano
Domingos Ribeiro dos Guimarães Peixoto redigiu em 1820.
Ambos os textos, embora ainda
atrelados à "teoria miasmática"
-segundo a qual as doenças seriam provocadas por "miasmas" ou emanações malignas
provenientes do solo, da água
ou do ar "estagnados"-, apresentavam sugestões absolutamente razoáveis e factíveis.
Mas elas ficaram no papel
-menos, é claro, a mais desnecessária delas: a que propunha
o arrasamento do "nocivo"
Morro do Castelo, onde a cidade nascera.
No país das chances desperdiçadas, os 500 anos do descobrimento passaram quase em
negras nuvens. Os 200 anos do
desembarque da família real
estão recebendo tratamento
mais condigno, e os livros publicados sob os auspícios da comissão dirigida pelo historiador Alberto da Costa e Silva são
de qualidade.
Que as reflexões do doutor
Vieira da Cunha e os prolegômenos do doutor Peixoto tenham sido reunidos e relançados (sob o título "A Saúde Pública no Rio de Dom João") é
uma boa iniciativa -embora,
de certo modo, configure mais
uma oportunidade mal aproveitada. O assunto, afinal, renderia bem mais do que o prefácio de Scliar; e "espaço" para
mais reflexões não faltava, tanto que, das 118 páginas do livro,
50 são preenchidas por ilustrações, quase todas de Debret.
Os conceitos defendidos pelos conselheiros estão desatualizados, mas o que dizer dos temas tratados por eles? Medicamentos falsificados, hospitais
lotados, descaso público e desleixo privado, charlatanismo,
"abuso de liquores espirituosos, de bebidas fermentadas e
dos prazeres de Vênus", lixo
nas ruas e... proliferação de
mosquitos. Velho chavão: povo
que não conhece sua história
fica que nem mosca tonta. Moral da história: não basta mudar o nome dos mosquitos. É
preciso dar nome aos bois.
EDUARDO BUENO é autor de "À Sua Saúde - A
Vigilância Sanitária na História do Brasil" (ed.
da Anvisa) e "Náufragos, Traficantes e Degredados" (ed. Objetiva), entre outros
A SAÚDE PÚBLICA NO RIO DE
DOM JOÃO
Autores: Manoel Vieira da Silva e Domingos Ribeiro dos Guimarães Peixoto
Editora: Senac Rio
Quanto: R$ 29,90 (120 págs.)
Avaliação: bom
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