São Paulo, sábado, 19 de abril de 2008

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ANTONIO CICERO

As vanguardas e a tradição


As vanguardas do início do século 20 não reconhecem precursores nem aceitam tradição

EM ENSAIO chamado "Escrever como Reescrever: a Poesia Concreta como Retaguarda", a crítica literária americana Marjorie Perloff defende a tese de que seria mais adequado considerar a poesia concreta brasileira como "retaguarda" do que como "vanguarda".
Evitemos mal-entendidos: para ela, "retaguarda" não significa o oposto de "vanguarda". Não se trata, por exemplo, de um movimento de conservação ou de restauração do passado. Tendo em vista a origem militar tanto de um termo quanto do outro, ela lembra que "a retaguarda do exército é a parte que protege e consolida o movimento das tropas em questão". Assim, "quando um movimento de vanguarda não é mais novidade, o papel da retaguarda é completar a sua missão, assegurar o seu êxito".
As vanguardas do início do século 20 -em particular o futurismo italiano e o russo, além de dadá- não reconhecem precursores nem aceitam tradição. Para elas, de maneira geral, o passado não só estava morto mas seu cadáver era letal. É nesse espírito que, por exemplo, Marinetti, em manifesto de 1909, declara que um automóvel rugidor é mais belo que a Vitória de Samotrácia, e, entre outros, Maiakovski, em manifesto de 1912, exorta os poetas a jogarem fora do navio da modernidade Pushkin, Dostoiévski, Tolstói, etc.
"Em compensação, a retaguar- da", observa, com razão, Perloff, tendo em mente o concretismo, "trata as proposições da primeira vanguarda com um respeito vizinho da veneração". Perloff cita entrevista de 1993 em que Augusto de Campos explica que, na década de 50, "toda poesia experimental, toda arte experimental havia sido em certo sentido marginalizada. Só na década de 50 começou a redescoberta de Mallarmé, a redescoberta de Pound. [...] Acho que era necessário recu- perar os grandes movimentos de vanguarda".
O que Perloff chama de "retaguarda" consiste, portanto, numa vanguarda que reconhece precursores. O fato de destacar essa peculiaridade do concretismo é evidentemente mais importante do que o rótulo que usa para fazê-lo. E quais são os precursores que Augusto reconhece na entrevista citada? Mallarmé e Pound, os dois primeiros poetas que haviam sido citados como precursores no "Plano-Piloto para Poesia Concreta", de 1958.
Mallarmé, que morreu antes do século 20, não fez parte de nenhum movimento de vanguarda. Já Pound fez parte de dois movimentos de vanguarda ingleses, o imagismo e o vorticismo. Esses movimentos, como os continentais, não parecem reconhecer precursores. Além disso, eles se opõem ao passado imediato e às diluições vitorianas e edwardianas do romantismo. Por outro lado, ao contrário dos movimentos continentais, são capazes de valorizar, por exemplo, a poesia da antigüidade clássica.
De certo modo, porém, não seria correto dizer que Pound não reconhecesse precursores. Tomemos os princípios do imagismo, que ele publicou em 1913: tratar diretamente o objeto, não utilizar uma única palavra que não contribua para apresentá-lo etc. Se tais princípios pretendem ser o resultado da destilação da grande poesia de todas as épocas, então a poesia conscientemente feita de acordo com eles toma toda grande poesia como sua precursora. Além disso, por um processo sem dúvida circular, embora não necessariamente vicioso, esses princípios, uma vez destilados, proporcionam a base que permitem a Pound -e, na sua esteira, a T.S. Eliot- propor ousadas reavaliações e revisões do cânone poético em vigor na sua época.
Pois bem, quando o concretismo toma Pound como precursor é porque pretende ter radicalizado e levado às últimas conseqüências as descobertas desse poeta (assim como as de Mallarmé e de outros), chegando ao extremo de -no "Plano-Piloto" de 1958- dar por encerrado o ciclo do verso. Isso estava errado, é claro, pois grandes poemas em verso foram escritos desde então.
No entanto, apesar de seu radicalismo -ou melhor, por meio dele- o concretismo também foi capaz de, tendo aprendido com Pound, empreender a sua própria reconsideração e livre reapropriação da tradição. Não deve ser um acaso que não tenham sido poetas do Velho Mundo, mas americanos e brasileiros, os que precisaram levar a cabo tais reapropriações. Ao fazê-lo entre nós, o concretismo conseguiu dar a um país cuja intelligentsia costuma ser excessivamente cautelosa um exemplo de audácia muito mais significante e inteligente do que se tivesse simplesmente, ao modo das vanguardas históricas, em vão rejeitado todo precursor e toda tradição.


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