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Cannes revê brasileiro que "censurou"
SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL
O único filme brasileiro vencedor da Palma de Ouro -"O Pagador de Promessas" (1962), de Anselmo Duarte, que a 57ª edição do
festival francês reprisa hoje, em
sessão especial- perdeu em Cannes sua cena mais sensual: nua, no
chuveiro, Rosa (Glória Menezes)
vê Zé do Burro (Leonardo Villar)
invadir o boxe, vestidíssimo num
terno de linho branco, num arroubo de paixão, correspondido
com beijos que, a partir da boca,
descem pelo corpo dela.
A cena foi eliminada por sugestão do então diretor do Festival de
Cannes, Robert Fabre Levret,
"homem muito digno e de grande
cultura cinematográfica", nas palavras de Duarte, 84.
Ao chegar a Cannes, o diretor
brasileiro foi chamado por Levret
para uma conversa. "Ele elogiou
muito o meu filme, mas disse que
aquela cena fugia ao gênero dele,
era requentada do cinema erótico, além de se parecer muito com
outra cena-de Brigitte Bardot
em "E Deus Criou a Mulher" [Roger Vadim, 1956]".
Depois de dizer a Levret que conhecia Bardot, mas jamais havia
ouvido falar em Vadim ou visto o
filme do casal, Duarte concordou
com a sugestão de retirar a cena.
E foi além da proposta do diretor de Cannes. "Fui para a sala de
corte e tirei a cena inteira, não
apenas a parte em que eles estão
debaixo do chuveiro, mas também a que havia antes, deles conversando na cama. Não precisava
mesmo mostrar, fica subentendido", afirma.
Menezes, 69, recorda que a cena
do chuveiro foi feita no primeiro
dia de filmagens. "Eu, nervosíssima", diz. Até a véspera das rodagens, Menezes interpretaria a
prostituta Marly (papel que ficou
com Norma Bengell). Uma pneumonia da atriz inicialmente escalada para o papel de Marly provocou a movida de todas as peças.
"Estava loira, tive de pintar o cabelo à noite", diz Menezes, que
hoje se diverte com a nudez considerada inconveniente pelo diretor
de Cannes. "Era uma nudez de
1962, bem diferente da de hoje. O
espectador iria dizer que me viu
nua, tomando banho, mas eu estava mais ou menos encoberta pelo próprio ator. Havia uma colocação de câmera muito legal."
Segundo Duarte, a atriz "nem
quis tirar a roupa, só os ombros
estavam de fora". Menezes afirma
que "o importante é o que você
deduz. Uma boa montagem faz
uma cena ser muito excitante".
Vitorioso e de volta ao Brasil
-onde diretor e elenco desfilaram em carro do Corpo de Bombeiros, "com as pessoas empunhando bandeirinhas do Brasil",
lembra Menezes-, Duarte cortou a cena também do negativo
que havia ficado no país, dando
ao filme sua forma definitiva, sem
o trecho. Em Cannes, a projeção
havia sido feita a partir de uma cópia do negativo original.
"Pelas histórias que conheço,
Anselmo teria uma única cópia
[do filme] que contém essa cena",
diz o produtor Anibal Massaini.
"Que nada. Joguei fora no lixo.
Eu era muito relaxado nessa época", afirma o diretor.
As cenas de interiores de "O Pagador de Promessas", como a do
chuveiro, foram filmadas no teatro Castro Alves, em Salvador
(BA), que passava por reforma
após sofrer um incêndio. "Naquele palco imenso, foram construídos os cenários do quartinho e do
banheiro", diz Menezes.
Na Bahia, Bengell ouviu uma
antevisão mística sobre a carreira
premiada do filme.
"Filmamos num terreiro de
candomblé. A mãe de santo me
chamou e disse que o filme iria
para terras muito longes e que eu
era a única que não voltaria para o
Brasil." Ainda segundo a previsão, o filme seria premiado num
dia chuvoso e, nesse mesmo dia,
Bengell veria um burrico na rua.
"Achei estranho, mas não deu
outra. Fomos premiados, eu vi o
burrico e não voltei para o Brasil.
Fui contratada pelo [produtor]
Dino Di Laurentiis para ficar na
Itália e filmar "O Mafioso"."
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