|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARCELO COELHO
Entre o previsível e o surpreendente
Ler a revista "Caras" pode
pegar mal em certos meios, e
só se admite quando acompanhada de alguma explicação suplementar. Ou será que não? O
maior esnobismo, atualmente,
talvez esteja em aprovar a breguice, a tietagem, o consumismo e o
lixo cultural como se isso fosse sinal de rebeldia e autonomia de
espírito. O sujeito que se declara
fã de Hebe Camargo ou Ana Maria Braga acha que enunciou um
brilhante paradoxo, uma frase de
extrema sofisticação.
Seja como for, quem gosta de reportagens sobre celebridades não
precisa se contentar com as revistas de fofocas. Acaba de ser reeditado no Brasil, pela Companhia
das Letras, o livro "Fama e Anonimato", de Gay Talese. Trata-se
de um clássico do jornalismo literário -e um de seus pontos altos
está na longa reportagem sobre o
cotidiano de Frank Sinatra, que
Talese escreveu para a revista
"Esquire" em 1965.
É um texto espantosamente
agradável de ler, e me surpreendi
ao verificar que tinha cerca de 50
páginas. Chama-se "Frank Sinatra está resfriado". Eis como começa.
"Frank Sinatra, segurando um
copo de bourbon numa mão e um
cigarro na outra, estava num
canto escuro do balcão entre duas
loiras atraentes, mas já um tanto
passadas, que esperavam ouvir
alguma palavra dele. Mas ele não
dizia nada; passara boa parte da
noite calado (...). As duas loiras
sabiam, como também sabiam os
quatro amigos de Sinatra que estavam por perto, que não era
uma boa idéia forçar uma conversa com ele quando ele mergulhava num silêncio soturno, uma
disposição nada rara em Sinatra
naquela primeira semana de novembro, um mês antes de seu
quinquagésimo aniversário."
Talese continua: "Sinatra estava fazendo um filme que agora o
aborrecia e não via a hora de terminá-lo; estava cansado de toda
a falação da imprensa sobre seu
namoro com Mia Farrow, então
com 20 anos, que aliás não deu as
caras naquela noite (...)". Enumeram-se outros problemas. O
maior de todos é que a voz de Sinatra não estava bem: "Sinatra
estava doente. Padecia de uma
doença tão comum que a maioria
das pessoas a consideraria banal.
Mas, quando acontece com Sinatra, ela o mergulha num estado
de angústia, de profunda depressão, pânico e até fúria. Sinatra está resfriado".
Continuaremos acompanhando o resfriado de Sinatra por várias páginas, ao longo das quais o
ídolo dá mostras da mais completa antipatia; sabemos que humilha seus subordinados, que puxa
briga com qualquer um, que anda acompanhado de guarda-costas como uma espécie de chefe
mafioso...
É, como diz a chamada na capa
do livro, "o lado oculto" de uma
celebridade. Tudo seria muito
simples, entretanto, se nos contentássemos em desmascarar esta
ou aquela personalidade pública,
denunciando o bestalhão que se
esconde atrás do grande astro.
Esse jogo entre a exaltação e o
rebaixamento, típico de toda a
imprensa de celebridades, é dos
mais desinteressantes. A maior
habilidade de Gay Talese não é
essa; não está nem mesmo na inegável proeza técnica, sempre lembrada, de que o perfil foi escrito
sem que seu autor tivesse entrevistado Sinatra.
O que torna o texto bastante sutil é que, aparentando desmistificar a figura de Sinatra, Talese termina por reunir uma série de notas simpáticas a seu respeito.
Muitas trechos da reportagem
-um suposto diálogo de Sinatra
com seu cozinheiro, combinando
o que vai comer no jantar, por
exemplo- poderiam, a rigor, estar na revista "Caras". Mas não
percebemos a mudança de tom:
estamos certos de que o olhar do
repórter permanece impiedoso e
crítico.
No último parágrafo do texto,
encontramos Sinatra dirigindo
seu carro esporte, num dia de sol.
O sinal está vermelho. Pedestres
atravessam a rua. "Mas como
sempre acontece", escreve Talese,
"um dos passantes não foi embora. Era uma moça de uns 20 anos.
Ela ficou parada no meio-fio,
olhando para ele. Sinatra a via
pelo canto do olho esquerdo e sabia, pois isso acontece quase todo
dia, que ela estava pensando "é
parecido com ele, mas será que é
ele?". Pouco antes de o sinal abrir,
Sinatra voltou-se para ela, olhou-a diretamente nos olhos, esperando a reação que fatalmente viria.
Veio, e ele sorriu. Ela sorriu, e ele
se foi".
A beleza desse parágrafo, como
um raio de sol depois de um tempo tão enfarruscado, de tantas
noites de farra, de bebida, de cigarros e de mau humor, está em
que a imagem de um Sinatra simpático termina recuperada. Mais
do que isso, o final da reportagem
quase encena, em ponto menor,
aquilo que sempre esperamos ao
ler sobre celebridades.
"É ele ou não é ele? Parece com
ele, mas será ele?" Esse instante de
hesitação, essa pequena demora
antes de se reconhecer a pessoa
famosa, essa incerteza entre celebridade e anonimato é justamente o que nos atrai nas páginas de
"Caras", quando vemos as fotos
de paparazzi ou as alterações
mais brutais que um botox tenha
imposto à atriz ou ao apresentador de TV: "Será Fulano? Está diferente... Mas é o mesmo!".
Menos do que o prazer imaginário de nos depararmos com um
mundo de beleza e perfeição, e
menos do que a alegria real de
ver, inversamente, o lado "pior"
dos bem-afortunados, creio que
essa dúvida, essa oscilação entre o
conhecido e o desconhecido, o
previsível e o surpreendente, é o
que nos atrai para todo jornalismo desse tipo; seja o de "Caras",
seja o de Talese. Não diferem
muito em sua motivação. Terminamos encontrando, como a pedestre que viu Sinatra, algo que é
ao mesmo tempo corriqueiro e
único, milagroso e banalíssimo:
um ser humano. O texto de Talese
é mais artístico, claro, porque está
consciente disso.
Texto Anterior: Análise: TV precisa de alternativas à violência Próximo Texto: Panorâmica - Literatura: Lévi-Strauss tem livro lançado hoje Índice
|