São Paulo, quarta-feira, 19 de maio de 2004

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MARCELO COELHO

Entre o previsível e o surpreendente

Ler a revista "Caras" pode pegar mal em certos meios, e só se admite quando acompanhada de alguma explicação suplementar. Ou será que não? O maior esnobismo, atualmente, talvez esteja em aprovar a breguice, a tietagem, o consumismo e o lixo cultural como se isso fosse sinal de rebeldia e autonomia de espírito. O sujeito que se declara fã de Hebe Camargo ou Ana Maria Braga acha que enunciou um brilhante paradoxo, uma frase de extrema sofisticação.
Seja como for, quem gosta de reportagens sobre celebridades não precisa se contentar com as revistas de fofocas. Acaba de ser reeditado no Brasil, pela Companhia das Letras, o livro "Fama e Anonimato", de Gay Talese. Trata-se de um clássico do jornalismo literário -e um de seus pontos altos está na longa reportagem sobre o cotidiano de Frank Sinatra, que Talese escreveu para a revista "Esquire" em 1965.
É um texto espantosamente agradável de ler, e me surpreendi ao verificar que tinha cerca de 50 páginas. Chama-se "Frank Sinatra está resfriado". Eis como começa.
"Frank Sinatra, segurando um copo de bourbon numa mão e um cigarro na outra, estava num canto escuro do balcão entre duas loiras atraentes, mas já um tanto passadas, que esperavam ouvir alguma palavra dele. Mas ele não dizia nada; passara boa parte da noite calado (...). As duas loiras sabiam, como também sabiam os quatro amigos de Sinatra que estavam por perto, que não era uma boa idéia forçar uma conversa com ele quando ele mergulhava num silêncio soturno, uma disposição nada rara em Sinatra naquela primeira semana de novembro, um mês antes de seu quinquagésimo aniversário."
Talese continua: "Sinatra estava fazendo um filme que agora o aborrecia e não via a hora de terminá-lo; estava cansado de toda a falação da imprensa sobre seu namoro com Mia Farrow, então com 20 anos, que aliás não deu as caras naquela noite (...)". Enumeram-se outros problemas. O maior de todos é que a voz de Sinatra não estava bem: "Sinatra estava doente. Padecia de uma doença tão comum que a maioria das pessoas a consideraria banal. Mas, quando acontece com Sinatra, ela o mergulha num estado de angústia, de profunda depressão, pânico e até fúria. Sinatra está resfriado".
Continuaremos acompanhando o resfriado de Sinatra por várias páginas, ao longo das quais o ídolo dá mostras da mais completa antipatia; sabemos que humilha seus subordinados, que puxa briga com qualquer um, que anda acompanhado de guarda-costas como uma espécie de chefe mafioso...
É, como diz a chamada na capa do livro, "o lado oculto" de uma celebridade. Tudo seria muito simples, entretanto, se nos contentássemos em desmascarar esta ou aquela personalidade pública, denunciando o bestalhão que se esconde atrás do grande astro.
Esse jogo entre a exaltação e o rebaixamento, típico de toda a imprensa de celebridades, é dos mais desinteressantes. A maior habilidade de Gay Talese não é essa; não está nem mesmo na inegável proeza técnica, sempre lembrada, de que o perfil foi escrito sem que seu autor tivesse entrevistado Sinatra.
O que torna o texto bastante sutil é que, aparentando desmistificar a figura de Sinatra, Talese termina por reunir uma série de notas simpáticas a seu respeito. Muitas trechos da reportagem -um suposto diálogo de Sinatra com seu cozinheiro, combinando o que vai comer no jantar, por exemplo- poderiam, a rigor, estar na revista "Caras". Mas não percebemos a mudança de tom: estamos certos de que o olhar do repórter permanece impiedoso e crítico.
No último parágrafo do texto, encontramos Sinatra dirigindo seu carro esporte, num dia de sol. O sinal está vermelho. Pedestres atravessam a rua. "Mas como sempre acontece", escreve Talese, "um dos passantes não foi embora. Era uma moça de uns 20 anos. Ela ficou parada no meio-fio, olhando para ele. Sinatra a via pelo canto do olho esquerdo e sabia, pois isso acontece quase todo dia, que ela estava pensando "é parecido com ele, mas será que é ele?". Pouco antes de o sinal abrir, Sinatra voltou-se para ela, olhou-a diretamente nos olhos, esperando a reação que fatalmente viria. Veio, e ele sorriu. Ela sorriu, e ele se foi".
A beleza desse parágrafo, como um raio de sol depois de um tempo tão enfarruscado, de tantas noites de farra, de bebida, de cigarros e de mau humor, está em que a imagem de um Sinatra simpático termina recuperada. Mais do que isso, o final da reportagem quase encena, em ponto menor, aquilo que sempre esperamos ao ler sobre celebridades.
"É ele ou não é ele? Parece com ele, mas será ele?" Esse instante de hesitação, essa pequena demora antes de se reconhecer a pessoa famosa, essa incerteza entre celebridade e anonimato é justamente o que nos atrai nas páginas de "Caras", quando vemos as fotos de paparazzi ou as alterações mais brutais que um botox tenha imposto à atriz ou ao apresentador de TV: "Será Fulano? Está diferente... Mas é o mesmo!".
Menos do que o prazer imaginário de nos depararmos com um mundo de beleza e perfeição, e menos do que a alegria real de ver, inversamente, o lado "pior" dos bem-afortunados, creio que essa dúvida, essa oscilação entre o conhecido e o desconhecido, o previsível e o surpreendente, é o que nos atrai para todo jornalismo desse tipo; seja o de "Caras", seja o de Talese. Não diferem muito em sua motivação. Terminamos encontrando, como a pedestre que viu Sinatra, algo que é ao mesmo tempo corriqueiro e único, milagroso e banalíssimo: um ser humano. O texto de Talese é mais artístico, claro, porque está consciente disso.


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