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CONTARDO CALLIGARIS
Segurança e liberdade
Algum tempo atrás, participei de uma reunião do condomínio do prédio onde moro,
em São Paulo.
O edifício nunca foi objeto de
assaltos, embora já tenha sido
teatro de histórias policiais. Uma
vez, a PF instalou dois agentes
num apartamento para montar
uma armadilha e prender traficantes, mas nada que colocasse
em perigo a tranqüilidade dos
moradores.
Na entrada, há um serviço de
portaria 24 horas, que controla o
acesso, "filtrando" os visitantes,
mas sem rigor excessivo: há moradores que querem ser avisados,
outros preferem que a pizza suba
direto.
Durante a reunião, um condômino lembrou os recentes arrastões em prédios residenciais paulistanos e perguntou se estávamos
satisfeitos com as condições de
nossa segurança. A questão, legítima, desencadeou uma sessão de
"brainstorming", cada um tentando imaginar o sistema que nos
protegeria melhor. Chegou-se a
uma proposta radical: os visitantes apresentariam sua identidade
e seriam fotografados digitalmente. Teríamos um registro de quem
entra e sai, com evidente efeito
dissuasivo. Só faltava um detector
de metais para que nos equiparássemos com um prédio da administração pública nova-iorquina depois dos atentados de 2001.
Com a ajuda do bom senso, nada disso acontecerá. Fica daquela
reunião que todos nós, com entusiasmo, cogitamos maneiras de limitar nossa liberdade para garantir nossa tranqüilidade.
Os condomínios funcionam como democracias regidas por um
contrato social: indivíduos com
direitos iguais se impõem normas
para cuidar do bem comum. Presume-se que as normas auto-impostas sejam limitadas ao estritamente necessário para que a convivência se torne possível, ou seja,
trata-se de criar as condições para a segurança, a administração,
a ordem pública etc. sem sacrificar a liberdade dos indivíduos, ou
melhor, sacrificando o mínimo
possível de liberdade.
Ora, desde o primeiro contrato
social moderno (o pacto dos peregrinos que fundaram os EUA, em
1620), a tendência parece ser outra. Estamos quase sempre dispostos a trocar liberdade por uma
promessa de segurança, mútua
assistência e ordem. É o segredo
de todos os fascismos: basta sacudir um espantalho (a miséria, os
judeus, os ciganos que roubam
nenês, os comunistas que os comem etc.) para que os cidadãos
queiram ou, no mínimo, aceitem
se submeter a mais normas do
que é preciso.
Há situações em que as vantagens públicas prometidas valem a
troca. Em caso de guerra e ameaça de bombardeio, é proibido ligar a luz elétrica sem fechar as
cortinas. Óbvio, não é?
Mas, com freqüência, vendemos
nossa liberdade barato. Na reunião de condomínio, por exemplo, levou um tempo para que nos
déssemos conta de que nosso sistema de segurança produziria um
registro permanente de todas as
pessoas que nos visitam.
Alguém dirá: qual é o problema
para um cidadão que respeita as
leis? Pois é, o sigilo é um elemento
decisivo da liberdade. Ser livre é
também poder agir, nos limites
impostos pela lei, sem que os outros saibam.
Nos EUA, depois de 2001, foi
proposta uma norma que forçaria as bibliotecas públicas a guardar (e a entregar às autoridades)
a lista dos livros emprestados a
cada leitor. Dessa forma, a polícia
poderia saber quais cidadãos
lêem tratados que explicam como
fabricar bombas caseiras. Útil,
não é?
Resta saber se essa vantagem
investigativa vale ou não a liberdade (assim perdida) de ler o que
quero sem que ninguém saiba.
Os indivíduos tendem a se vigiar, a se policiar e a se reprimir
muito além do necessário. A banalidade neurótica consiste em
matar formigas com rolo compressor. Para respeitar o corpo
materno, em vez de esquecer a
mãe e se interessar pelos outros e
pelas outras da vida, alguém não
se permite transar com parceiro
nenhum. Um sujeito, para não
competir com o pai, deve fracassar totalmente. Outro, para não
se sentir ameaçado pela desordem do mundo, é obrigado a desperdiçar seu tempo de trabalho
alinhando os papéis em cima de
sua mesa. Quase sempre, no conflito psíquico, a voz da repressão
fala mais alto.
A vida social não escapa a essa
regra. Na hora de legislar, o que
nos comanda não são apenas as
exigências da vida comunitária,
mas é, aparentemente, uma verdadeira ojeriza à liberdade. Talvez este seja o maior drama da
modernidade: conquistamos a liberdade de não corresponder ao
destino que nos seria reservado
por nosso berço, mas a diversidade dos caminhos abertos nos entrega à angústia. A possibilidade
de escolher ameaça o sentimento
de nossa identidade: quem sou
eu, se ninguém me dita meu desejo?
Por isso, talvez, muitos cheguem
aos consultórios de terapeutas e
psicanalistas com o projeto explícito de "descobrir" seu desejo, como se sua ambição fosse apenas
reconhecer a "sina" de sua vida
para conformar-se com ela. O terapeuta, em geral, espera que o
paciente se autorize a inventar a
vida, apesar de sua "sina" e contra ela.
Da mesma forma, na vida política, quando alguém propõe uma
norma, antes que se discuta para
saber se ela é justa ou errada, seria bom perguntar: será que ela é
mesmo absolutamente necessária
para a convivência social?
@ - ccalligari@uol.com.br
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