São Paulo, sexta-feira, 19 de maio de 2006

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CARLOS HEITOR CONY

Lembranças de uma tarde no Russel

Nunca levei a sério os tipos folclóricos que surgem em toda a parte, nos bairros, bares, repartições, sobretudo em Redações. Não os levo a sério, mas gosto deles, achando que são um momento da condição humana, com seus exageros, é claro, mas com uma transparência que todos percebem. Por isso mesmo são geralmente desprezados, mas queridos. A distinção entre não levar a sério e gostar pode ser um paradoxo, mas às vezes tem coerência.
Adolpho Bloch foi um personagem folclórico, provocava cóleras naqueles que não gostavam dele -e eram muitos, alguns por despeito, ressentimento, outros por motivos ideológicos, raciais, econômicos e trabalhistas, afinal, durante 50 anos, foi dono de um dos maiores mercados de trabalho na área da comunicação.
Dele tenho recordações variadas, algumas dramáticas, outras afetuosas, mas a maior parte delas é de admiração pela sua personalidade fora-de-série, capaz de ir em poucos segundos do sublime à banalidade mais crua e, muitas vezes, à mais indecente.
Eu o conheci tardiamente, já havia sido editor num jornal, publicara alguns livros, ganhara prêmios, estava sem emprego, nenhum jornal me aceitava desde que fora processado pelo ministro da guerra que logo tornou-se presidente da República. Adolpho não deu bola para o regime, aceitou-me em sua empresa, deu-me um salário equivalente ao que ganhava como diretor do outro jornal, mas abriu o jogo: que eu ficasse quieto na Redação, fazendo o trivial variado, mas, no fundo, que ajudasse JK a redigir suas memórias, começadas por Josué Montello e Caio de Freitas, mas que estavam emperradas, necessitando de um texto final e de uma edição. JK ficaria à minha disposição e eu à disposição dele.
Mas não era isso que eu desejava lembrar. O lado folclórico de Adolpho era vário e divertido, como soem ser os folclores. Eu ainda não o conhecia bem, ouvia histórias sobre ele, mas nunca presenciara nenhuma de suas pantomimas. Até que um dia, pouco depois do almoço, estava no sexto andar, fui chamado pelo telefone, em voz baixa, pelo Justino Martins, editor de "Manchete", cuja Redação era no oitavo andar. Adolpho, segundo Justino, estava "impossível". Não gostara do número que fora para as bancas, esculhambou todo mundo aos gritos, com gestos de mujique (ele era russo) e os olhos chispando fogo, como os de Rasputin, cuja resistência física e temperamento eram mais ou menos iguais ao seu. Em momentos de raiva, ficava sublime.
Dispensei o elevador para chegar mais depressa, Justino achava, sem razão alguma, que com minha presença as iras de Adolpho se abrandariam. Pelas escadas, ouvia os gritos dele, palavras grosseiras, lubrificadas pela cólera.
Quando cheguei ao oitavo andar, vindo das escadas, encontrei-o numa pausa: estava no corredor de serviço, bebendo no bebedouro para refrigerar a boca e a garganta em brasa. Vindo das escadas, ele não me viu. Eu é que o vi e ouvi. Depois de beber água, enxugou a boca com o punho da camisa e disse em voz calma e baixa para si mesmo: "Hoje eu estou terrível!".
Logo saiu da copa e entrou novamente na Redação, aos gritos, dando início ao segundo tempo daquela bronca, que só não foi memorável porque todas as suas broncas eram inesquecíveis.
Encolhido em sua mesa de editor, cercado de cromos e textos, Justino olhou para mim, cobrando-me uma intervenção salvadora. Não foi preciso. Adolpho finalmente me viu e veio contra mim: "E você, que botou na capa do "Desfile" aquela mulher com chapéu?! Já disse que não quero mulher com chapéu na capa de nenhuma revista!".
"Aquela mulher" era a princesa de Mônaco, a Grace Kelly, que naquela semana estava sendo acusada de ter tido um caso com um playboy internacional, chifrando o príncipe Rainier e, segundo a matéria que havia vindo de uma agência internacional, "dando mau exemplo às suas filhas, ainda púberes, Caroline e Stéphanie". (Aliás, nenhuma das duas precisavam do mau exemplo da mãe, tinham um DNA caprichado, logo em seguida iniciaram elas próprias uma carreira respeitável de casos que emocionaram os consumidores de escândalos).
Bem, diante da ira do Adolpho, me defendi como pude. Disse que a mulher de chapéu era a princesa de Mônaco, que Grace Kelly sempre vendia bem as revistas que a traziam na capa, tanto no Brasil como em todo o mundo. Era um dos recursos dos editores, apelar para ela como para Liz Taylor, Sophia Loren, Rachel Welch. Com chapéu ou sem chapéu elas vendiam.
Adolpho esbravejou:
-Com chapéu elas não vendem nada!
Mudei a linha de defesa e argumentei: não podendo falar mal do governo, não tinha nenhum assunto que merecesse capa. Ponte Rio-Niterói, a grande obra do governo naquela época, é que não vendia mesmo, ainda mais numa revista feminina.
Adolpho mudou de tom, mesmo assim me fuzilou:
-Quando não tiver assunto, bote o Cristo Redentor! Ele vende tudo.
E foi novamente ao bebedouro, constatar que estava terrível.


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