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CARLOS HEITOR CONY
Lembranças de uma tarde no Russel
Nunca levei a sério os tipos
folclóricos que surgem em
toda a parte, nos bairros, bares,
repartições, sobretudo em Redações. Não os levo a sério, mas gosto deles, achando que são um momento da condição humana, com
seus exageros, é claro, mas com
uma transparência que todos percebem. Por isso mesmo são geralmente desprezados, mas queridos. A distinção entre não levar a
sério e gostar pode ser um paradoxo, mas às vezes tem coerência.
Adolpho Bloch foi um personagem folclórico, provocava cóleras
naqueles que não gostavam dele
-e eram muitos, alguns por despeito, ressentimento, outros por
motivos ideológicos, raciais, econômicos e trabalhistas, afinal, durante 50 anos, foi dono de um dos
maiores mercados de trabalho na
área da comunicação.
Dele tenho recordações variadas, algumas dramáticas, outras
afetuosas, mas a maior parte delas é de admiração pela sua personalidade fora-de-série, capaz
de ir em poucos segundos do sublime à banalidade mais crua e,
muitas vezes, à mais indecente.
Eu o conheci tardiamente, já
havia sido editor num jornal, publicara alguns livros, ganhara
prêmios, estava sem emprego, nenhum jornal me aceitava desde
que fora processado pelo ministro
da guerra que logo tornou-se presidente da República. Adolpho
não deu bola para o regime, aceitou-me em sua empresa, deu-me
um salário equivalente ao que ganhava como diretor do outro jornal, mas abriu o jogo: que eu ficasse quieto na Redação, fazendo
o trivial variado, mas, no fundo,
que ajudasse JK a redigir suas
memórias, começadas por Josué
Montello e Caio de Freitas, mas
que estavam emperradas, necessitando de um texto final e de uma
edição. JK ficaria à minha disposição e eu à disposição dele.
Mas não era isso que eu desejava lembrar. O lado folclórico de
Adolpho era vário e divertido, como soem ser os folclores. Eu ainda
não o conhecia bem, ouvia histórias sobre ele, mas nunca presenciara nenhuma de suas pantomimas. Até que um dia, pouco depois do almoço, estava no sexto
andar, fui chamado pelo telefone,
em voz baixa, pelo Justino Martins, editor de "Manchete", cuja
Redação era no oitavo andar.
Adolpho, segundo Justino, estava
"impossível". Não gostara do número que fora para as bancas, esculhambou todo mundo aos gritos, com gestos de mujique (ele
era russo) e os olhos chispando fogo, como os de Rasputin, cuja resistência física e temperamento
eram mais ou menos iguais ao
seu. Em momentos de raiva, ficava sublime.
Dispensei o elevador para chegar mais depressa, Justino achava, sem razão alguma, que com
minha presença as iras de Adolpho se abrandariam. Pelas escadas, ouvia os gritos dele, palavras
grosseiras, lubrificadas pela cólera.
Quando cheguei ao oitavo andar, vindo das escadas, encontrei-o numa pausa: estava no corredor
de serviço, bebendo no bebedouro
para refrigerar a boca e a garganta em brasa. Vindo das escadas,
ele não me viu. Eu é que o vi e ouvi. Depois de beber água, enxugou
a boca com o punho da camisa e
disse em voz calma e baixa para si
mesmo: "Hoje eu estou terrível!".
Logo saiu da copa e entrou novamente na Redação, aos gritos,
dando início ao segundo tempo
daquela bronca, que só não foi
memorável porque todas as suas
broncas eram inesquecíveis.
Encolhido em sua mesa de editor, cercado de cromos e textos,
Justino olhou para mim, cobrando-me uma intervenção salvadora. Não foi preciso. Adolpho finalmente me viu e veio contra mim:
"E você, que botou na capa do
"Desfile" aquela mulher com chapéu?! Já disse que não quero mulher com chapéu na capa de nenhuma revista!".
"Aquela mulher" era a princesa
de Mônaco, a Grace Kelly, que
naquela semana estava sendo
acusada de ter tido um caso com
um playboy internacional, chifrando o príncipe Rainier e, segundo a matéria que havia vindo
de uma agência internacional,
"dando mau exemplo às suas filhas, ainda púberes, Caroline e
Stéphanie". (Aliás, nenhuma das
duas precisavam do mau exemplo da mãe, tinham um DNA caprichado, logo em seguida iniciaram elas próprias uma carreira
respeitável de casos que emocionaram os consumidores de escândalos).
Bem, diante da ira do Adolpho,
me defendi como pude. Disse que
a mulher de chapéu era a princesa de Mônaco, que Grace Kelly
sempre vendia bem as revistas
que a traziam na capa, tanto no
Brasil como em todo o mundo.
Era um dos recursos dos editores,
apelar para ela como para Liz
Taylor, Sophia Loren, Rachel
Welch. Com chapéu ou sem chapéu elas vendiam.
Adolpho esbravejou:
-Com chapéu elas não vendem nada!
Mudei a linha de defesa e argumentei: não podendo falar mal do
governo, não tinha nenhum assunto que merecesse capa. Ponte
Rio-Niterói, a grande obra do governo naquela época, é que não
vendia mesmo, ainda mais numa
revista feminina.
Adolpho mudou de tom, mesmo
assim me fuzilou:
-Quando não tiver assunto,
bote o Cristo Redentor! Ele vende
tudo.
E foi novamente ao bebedouro,
constatar que estava terrível.
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