São Paulo, terça, 19 de maio de 1998

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Todos nós queríamos ser o Frank Sinatra

ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas

Quando eu nasci, o Frank Sinatra estava estreando no Paramount Theatre em Nova York, com os brotinhos histéricos da época querendo comê-lo vivo, entre lágrimas de paixão. Aliás, o Frank Sinatra nasceu no mesmo dia que eu, 12 de dezembro, aniversário também de homens ilustres como Ludwig Van Beethoven, do escritor Gustave Flaubert e do meu amigo e rival "Cabeção", da Urca, famoso campeão de ejaculações em velocidade, como já contei aqui.
Agora que Sinatra morreu, percebo que sua presença moldava minha personalidade adolescente, quando fui morar com meus pais nos EUA, numa cidadezinha chamada Saint Augustine, na Flórida. Nessa época, o Sinatra estava se recuperando do alucinado casamento com a deslumbrante Ava Gardner e estava lançando seus discos mais "swinging", com orquestrações do grande Nelson Riddle para a Capitol.
Eu já era seu fã desde que ele se separou da Ava Gardner. Logo depois, ela veio ao Rio e quis "dar" para um cantor da Rádio Nacional que, deslumbradamente, broxou e ela quebrou o quarto todo do hotel. Naquele tempo, as estrelas vinham ao Brasil quebrar hotéis. Orson Welles quebrou o Copa, Ava quebrou o Glória e nós babávamos de orgulho: "Fulano veio aqui e arrebentou tudo!", dizíamos, exultantes colonizados.
"Eu não broxaria!", bradou na época o mestre Bené, o pipoqueiro, meu professor de sexo, de fronte alta. E disse em português castiço: "O que me dói é sabê-las mal comidas!" Eu nem falei, já deprimido com a fragilidade dos grandes amores, pensando no pobre Sinatra, com dor-de-corno em Los Angeles. Pois o cantor broxou e até hoje essa história é uma mancha na sexualidade do macho brasileiro, um dos poucos orgulhos nacionais.
Pois bem, quando eu cheguei aos EUA, eu queria ser o Frank Sinatra. Trêmulo diante de tudo, eu era o rapaz perfeito para "não fazer" sucesso na América. Magro, lendo poesia, não combinava com aqueles delinquentes juvenis que tinham entrado na moda, com cabelos à Elvis, jaquetas de couro, facas de mola ("switch-blades"), que eles usavam no doce esporte de sair na porrada. Eu vi que tinha absolutamente que arranjar uma personalidade para mim. E foi o Frank. Sua inesquecível briga com Ernest Borgnine em "A um Passo da Eternidade", quando o magro soldadinho arrebenta uma cadeira na cabeça do sargentão fortíssimo, me marcou a alma. Eu passei a ostentar um frio distanciamento, uma falsa fleuma diante dos colegas americanos, tentando imitar o jeito do meu ídolo. O que me fascinava era a tranquilidade que ele dava a seus personagens de cinema. Lembro-me de seu olhar calmo, puro, azul, em "Young at Heart", por exemplo, um olhar que denotava coragem e desencanto, inocência e sabedoria, com uma interpretação nova, que fugia dos trejeitos neuróticos do Actor's Studio e imobilizava suas feições, num "ritcus" minimalista, olhando sem medo. Eu não gostava dele em papéis mais trêfegos, como em "On the Town". Eu queria-o triste como eu, desolado, solitário, com a capa nos ombros, gravata aberta, cigarro entre os dedos. Com os delinquentes juvenis que me cercavam na "soda fountain", isso funcionou razoavelmente, o que me salvou de espancamentos perigosos, pois os garotões me achavam um estranho "nerd" útil, já que eu lhes dava generosa "cola" em "speling", pois, inacreditavelmente, eu soletrava melhor que eles, engasgados nas "dificílimas" palavras de raiz latina. Já com as meninas, meu tipo funcionou menos. Tive três namoradas: Emily, Brenda e Melinda. Elas se impressionavam com meu mistério de estrangeiro, minha aparente frieza de macho vivido, um "scent" de Humphrey Bogart que eu também soubera acrescentar a meus gestos, o que no Brasil me valeria o apodo de "mascarado", charme comum nos anos 50, descrito por esse termo em desuso, mas muito útil para nomear contemporâneos. Precisamos reciclar a palavra "mascarado". Mas, isso é outro papo. O fato é que eu fazia um sucesso inicial e logo depois perdia pontos, devido a minha vocação natural para virgem romântico, que se apaixonava com facilidade. Emily Killbrew (a ruiva que andava a cavalo) me descurtiu, quando eu cantei "I Got You Under My Skin" em seu ouvido, trêmulo de paixão. Melinda Mills, loura aguada com seios enormes sob o "sweater", perdeu o amor por mim quando viu lágrimas rolando em meu rosto ao fim da projeção de "An Affair to Remember", com Cary Grant (ou Gregory Peck?) e Deborah Kerr, no cine Matanzas. A linda Brenda (mais "pirada", sexy e talvez não mais virgem -como saberei agora?) simplesmente sumiu com Warren Caputo, italiano forte e mau que tinha um carro "hot rod" com pneus de trator. E eu me identifiquei com a famosa dor-de-corno de Sinatra, abandonado por Ava, que tinha ido "dar" para um toureiro na Espanha e quebrar o hotel no Rio, "não comida", para nossa vergonha.
A verdade é que eu continuei seguindo o Frank Sinatra e fiquei deslumbrado de inveja quando estreou o "Ocean's Eleven" e surgiu o "Rat Pack" ("a turminha dos ratos"), como eram chamados os alegres playboys de Las Vegas: ele, Dean Martin, Joe Bishop, Sammy Davis e Peter Lawford. Era o máximo, aqueles gozadores de terninho e uísque na mão, sacaneando os americanos caretas dos 60. Era a pré-figuração de um desbunde para executivos.
Aí, o Frank já perdera aquela aura lírica do início e virara outro tipo de herói: o cínico comedor de: Laureen Bacall, Marilyn, Jill St. John, Kim Novak, Mia e muitas outras. Depois, ele se meteu em negócios com a máfia. Muitos se desapontaram. Eu, não. Eu queria ser da "gang" do Lucky Luciano e do Sam Giancana de Chicago, queria ter poder, ser mau com os inimigos e leal aos amigos (dizem que, quando o Woody Allen se separou agora da Mia Farrow, o Sinatra perguntou se ela queria que quebrassem as pernas dele). Hoje, sei que nunca atingirei o paraíso na Terra, que para mim teria sido participar de uma festinha do "rat pack" com todas aquelas mulheres boas ("broads") na suíte presidencial do Sands Hotel, em Vegas. Nunca chegarei lá. E minha vida tem sido isso; só percebi quando ele morreu. O tipo de macho ideal que ele encarnava me dava régua e compasso. Até o dia em que tive -aí sim- uma séria decepção, melhor dizendo, um trauma, uma ferida narcísica incurável. Foi quando Sinatra preferiu Tom Jobim a mim. Este sim conseguiu o que tanto eu queria na vida. Chamado a Los Angeles pelo telefone do bar Veloso, Tom privou com ele e apareceu naquelas imagens que me gelaram a alma, dando gargalhadas e tocando violão com meu ídolo no estúdio de gravação... Que felicidade naquelas fotos -os dois lindos fazendo música. Tão grande foi minha inveja, tão funda minha dor que, quando Sinatra veio ao Brasil, eu não fui ao Maracanã. Ninguém percebeu, mas eu não fui e vi na televisão, depois, o que eu tinha perdido. Era tarde demais. Nunca mais eu veria Frank Sinatra em carne e osso, cantando "I Got You Under My Skin" ou "The Lady Is a Tramp", como no imortal Pal Joey. E hoje, só me resta esta vida escura, sem brilho, sem as luzes de Las Vegas. E ontem caiu minha última esperança. Pensei: se até o Frank Sinatra morreu, que será de mim?



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