São Paulo, sábado, 19 de junho de 2004

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LITERATURA

Obra de Christopher Ricks compara cantor a grandes da língua inglesa

"Não passo um dia sem ouvir ou pensar sobre Bob Dylan"

John Cohen/Reuters
Bob Dylan, aos 21 anos, cuja obra é analisada em "Visions of Sin'


CHARLES MCGRATH
DO "NEW YORK TIMES"

Christopher Ricks, que acaba de ser eleito catedrático de poesia na Universidade de Oxford, também ocupa a cátedra Warren de Humanas na Universidade de Boston, onde dispõe de um grande escritório. Lá, junto às estantes preenchidas por cópias de títulos escritos ou editados por Ricks sobre Keats, Milton, Beckett e T. S. Eliot, antologias de poesia vitoriana e de poesia inglesa, repousa em um canto um aparelho de som portátil que Ricks leva para as aulas quando quer falar de outro de seus poetas favoritos: Bob Dylan.
Ricks, 70, nasceu no Reino Unido e estudou em Oxford, e é visto como o professor dos professores, um erudito entre os eruditos. Seria difícil decidir quem sabe mais versos ingleses de cor, se ele ou Harold Bloom, mas é certo que Ricks sabe mais letras do Led Zeppelin do que Bloom, e quando solicitado é capaz de recitá-las.
O amor dele pelo trabalho de Dylan não é uma afetação, uma tentativa patética de um velho intelectual para parecer atualizado, mas uma paixão genuína. Ele acaba de acrescentar mais um título ao catálogo já considerável de estudos acadêmicos sobre Dylan, com "Dylan's Visions of Sin" (As Visões do Pecado em Dylan), seu mais longo livro até hoje, que dedica 500 páginas a uma análise detalhada dos maiores sucessos do mestre.
O livro começa com uma mensagem ao leitor que de certa forma se baseia em uma das canções de Dylan em sua juventude: "Tudo que desejo é o quê, exatamente? Ser seu amigo? Certamente não quero te sacanear, selecionar, dissecar, inspecionar ou rejeitar".
E o texto continua mais ou menos nesse tom. O estilo literário de Ricks não difere muito de seu estilo de conversa: repleto de humor, alusões, trocadilhos, digressões e conexões imprevistas que muitas vezes causam espanto, mas em geral acabam por se provar surpreendentes e evocativas. Há diversos pontos do livro em que ele compara Dylan a Marvell, Marlowe, Keats, Hardy, Yeats e Marlon Brando, para citar apenas algumas de suas referências.
Um dos críticos de Ricks, John Carey, outro professor de Oxford, se queixa de que há algo de obsessivo na carga de detalhes contida em "Dylan's Visions of Sin" e ele aponta que Ricks é tão habilidoso que "seria capaz de provar que uma lista telefônica está repleta de intrincada beleza".
O livro não dedica atenção nenhuma à vida de Dylan, não menciona sua transição do violão para a guitarra elétrica ou suas conversões do judaísmo ao cristianismo, e de volta, ou sua recente presença em um comercial de lingerie da Victoria's Secret, e se concentra mais na forma das canções do que em seu conteúdo.

Exageros e paralelos
Há passagens em "Dylan's Visions of Sin" que podem parecer exageradas aos leitores, como o trecho em que Ricks dedica quatro páginas (e quatro notas de pé de página) à letra de "All the Tired Horses", uma canção que só tem dois versos ou, talvez, três, se contarmos o "hummm" ao final.
Outros capítulos, porém, estabelecem paralelos perceptivos e convincentes entre, digamos, "Lay Lady Lay" e "To His Mistress Going to Bed", um poema de John Donne, e entre "Not Dark Yet" e "Ode a uma Urna Grega", de Keats, ou entre "A Hard Rain's A-Gonna Fall" e a balada escocesa "Lord Randall".
"Não passo um dia sem que eu ouça Dylan, ou pelo menos pense sobre ele e sua arte", disse Ricks em entrevista recente concedida durante a tarde do 63º aniversário de Dylan. "Creio que seja uma imensa sorte para nós viver no mesmo tempo que ele."
Ricks se interessou pela música de Dylan quando lecionava na Universidade da Califórnia em Berkeley, em 1965, mas naquela época ele estava apenas "escutando" as canções, sem "ouvi-las", diz. "Por algum motivo, eu era orgulhoso ou indiferente demais."
Começou a ouvi-las em uma noite no Smith College, em 1968, quando depois do jantar seu anfitrião apagou a luz e colocou "Desolation Row", uma canção que chamaria a atenção de um professor de literatura inglesa, porque incluía versos sobre "Ezra Pound e T. S. Eliot/Lutando na torre do capitão/ Sob as risadas dos cantores de calipso" -Dylan mais tarde excluiu esses versos. "Bom, como aquilo era profundo", diz Ricks. "Achei os versos maravilhosos. Eu os achei fantásticos."
Mais ou menos ao mesmo tempo, Ricks começou também a escutar as canções de amor de Dylan. "Você começa a se apaixonar por uma canção quando a aplica à pessoa que conheceu ao som dela", diz. "E depois a equação se transforma em outra coisa, complementar, e você passa a compreender melhor a pessoa em virtude da canção, o que cria uma espécie adorável de círculo virtuoso. A extraordinária aplicabilidade das canções me parece ser parte de sua grandeza. Chego a perguntar, no livro, como Dylan sabia tudo aquilo sobre mim."
Ricks conta ter assinado um contrato para escrever um livro sobre Dylan 20 anos atrás, mas só recentemente decidiu escrevê-lo em parte porque foram algumas das canções cristãs lançadas por Dylan em sua maturidade que sugeriram a forma do livro, que envolve o uso dos sete pecados capitais, das virtudes e das graças divinas como uma espécie de princípio organizador ou, nas palavras de Ricks, "como a melhor alça para erguer aquele fardo".
Depois de completar o livro, conta, ele estava "decidido a repousar sobre os louros", mas a cátedra de poesia em Oxford o obriga a fazer duas palestras anuais lá, e ele já começou a estudar possíveis temas. "Acho que deveria falar sobre Dylan", diz. "Seria falso não fazê-lo."

Falta de entusiasmo
Nem todos os seus amigos e colegas compartilham do entusiasmo de Ricks por Dylan. "Meu filho mais velho tem 45 anos", diz, "e acho que ele tem pena de mim por gostar disso". John Silber, ex-diretor geral da Universidade de Boston e amigo de Ricks, costumava fingir que o Dylan que tanto cativava o amigo era Dylan Thomas, e não o músico que começou a vida como Bob Zimmerman.
E nem sequer a mulher de Ricks, a fotógrafa Judith Aronson, foi aos três shows quando Dylan se apresentou na região de Boston, recentemente. Mas Ricks nem pensou em faltar a um dos espetáculos. Os shows de Dylan têm uma beleza e uma tristeza peculiares, explica Ricks, porque Dylan é a única pessoa que tem de estar em um show de Dylan, mas também a única pessoa que não pode ir a um show de Dylan. "É triste", disse ele, "da mesma maneira que seria triste que Jane Austen não pudesse ler seus romances".
Quando questionado se alguma vez se encontrou pessoalmente com Dylan, Ricks sorri e faz um gesto com o dedo, cerrando os lábios. Seu apreço e seu sentimento protetor, na verdade, se estendem até mesmo à aparência do cantor. Depois do lançamento de "Time Out of Mind", em 1997, Ricks se irritou com o bigode fino que Dylan começara a usar. "Acho que não fica bem", diz. "Não é?" Ele acrescenta que chegou a pensar em uma petição pedindo "por favor, Sr. Dylan, remova o pontilhado de seu lábio superior". Mas Ricks conta que "não enviei a petição, porque meus alunos achavam que isso poderia ferir os sentimentos de Dylan. Mas gostei muito da aliteração entre "lip" [lábio] e "stipple" [pontilhado]".

Tradução Paulo Migliacci


DYLAN'S VISIONS OF SIN. Autor: Christopher Ricks. Editora: Ecco. Quanto: R$ 80, aproximadamente. Onde encontrar: www.amazon.com.


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