São Paulo, segunda-feira, 19 de junho de 2006

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GUILHERME WISNIK

Arenas do ritual contemporâneo


Arquitetura dos estádios demonstra a preocupação com o caráter midiático dos eventos esportivos atuais

PARA quem assistiu Dinamarca 2 x 0 Bulgária, na Eurocopa 2004, foi um espanto ver o paredão de pedra bruta atrás de um dos gols. Projetado pelo arquiteto português Eduardo Souto de Moura, o Estádio de Braga, que então se inaugurava, foi implantado sobre uma pedreira, deixando à vista sua configuração "natural". O resultado, apesar de impressionantemente forte, foi questionado por aqueles que acharam essa concessão cenográfica um tanto dispersiva para a atmosfera do jogo. Ao que o arquiteto respondeu, com irônico realismo, que o seu objetivo foi criar um belo espetáculo para a TV, e que o futuro do futebol é realizar-se em estúdios.
O Allianz Arena, de Munique, palco da abertura da Copa, e do jogo de ontem entre Brasil e Austrália, é também um estádio projetado com alta consciência midiática. Inteiramente revestido por uma "péle" translúcida e inflável, feita de 2.800 bolhas de ETFE (etil-tetra-fluor-etileno) que acendem homogeneamente em cores variáveis, o estádio parece um zepelim iluminado e calmamente pousado, em contraste com o relevo dos alpes, ao fundo.
Projetado pelos arquitetos suíços Jacques Herzog e Pierre de Meuron (H&deM), vencedores do Prêmio Pritzker em 2001, o Allianz é uma autêntica arena moderna. Diferentemente do estádio de Berlim, em que as escadarias monumentais esfriam a emoção da partida, e de centros de espetáculos multi-uso com coberturas móveis, como Gelsenkirchen, a Arena de Munique é um anel fechado sem pirotecnia em seu espaço interno. Sem pista de atletismo, e com arquibancadas muito inclinadas que terminam rente às "quatro linhas", o estádio é uma rotunda que, como o Coliseu, propicia uma concentrada devoção ao espetáculo de vida e morte que ali se joga em ritual de presentificação carnal.
Por outro lado, externamente é um volume pneumático cuja imaterialidade anula o peso da construção. Nesse sentido, nega uma longa tradição de projetos de estádios que tomam partido da grande escala para construir obras em que o desenho da estrutura é a expressão das cargas a que está submetida.
É também de H&deM o projeto do Estádio Nacional de Pequim, em construção para as Olimpíadas 2008. Ali, ao contrário, o volume é uma trama estrutural de concreto armado inteiramente vazada, como o arranjo aleatório de gravetos que formam um ninho de pássaro. Eminentemente simbólicos, os projetos da dupla suíça recorrem tanto a imagens artesanais e biomórficas quanto a referentes tecnológicos. Mas em ambos, é evidente o domínio sobre a dimensão espetacular dessas arenas, que, como os museus, se tornaram as vedetes do "circo" midiático e transnacional contemporâneo.
Quanto ao prognóstico de Souto de Moura, o que podemos reter, às avessas, é a idéia de que o jogo precisa ser disputado para ser efetivamente ganho. Entorpecidos por uma certeza prévia de vitórias, que se alastra feito praga pela mídia, nós (a torcida brasileira) agimos como se cada jornada de um craque de futebol não tivesse parentesco com o destino incerto dos gladiadores romanos.


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