São Paulo, terça-feira, 19 de junho de 2007

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CECILIA GIANNETTI

De mudança


São Paulo atrai com tudo o que o Rio não tem mais desde que começou a deixar de ser mercado para ser balneário

QUANDO SÃO Paulo me rouba um amigo, engulo em seco e minto: não é o fim da picada, vamos nos visitar. Aí São Paulo -gigante, esperta, não dá pra brigar com ela- vai e me rouba outro. Ameaça carregar mais.
Ultrapassa qualquer lugar do Brasil nesse esporte cruel de tragar filhos do balneariozinho macabro de onde teclo, de levar embora quem me torna suportável o exercício diário de encarar as mesmas calçadas esburacadas.
O abominável excesso de adjetivos hoje não é tentativa de vingança contra São Paulo: é reação que não posso evitar quando essa cidade adota mais um dos meus. Cuspo adjetivos, advérbios; melhor do que chorar, verbo copioso. Autodestrutiva, uso até o ponto-e-vírgula, coisa que Kurt Vonnegut enquadrava como crime.
Brasília até hoje só me levou um amigo (tinha ambição de diplomata, fazer o quê, prendê-lo ao pé da mesa?), contra a legião que migra para SP agora no que me parece uma revoada. Meus anjos todos se mandando daqui.
Marketing, tecnologia, assessorias, bons salários. Empregos! Nenhum desses ex-cariocas que conheço mudou-se por amor. Nenhum deles conheceu uma moça ("os cornos da Audrey Hepburn") num centro cultural da Paulista e ficou. Fala mais alto a primeira necessidade, apelido do dinheiro, que não é chique mencionar. Quem pode culpá-los? Não os cariocas.
São Paulo atrai com tudo o que o Rio de Janeiro não tem mais desde que começou a deixar de ser mercado para se tornar quase exclusivamente balneário (macabro, macabríssimo), sem que essa transformação resultasse em grandes saltos positivos para o turismo local. Pelo contrário, a turistada também há de fugir.
Péra lá, aqui ficam poucos e bons. Mas até quando? Nem quero pensar nisso. Prefiro ser pega de surpresa, com a notícia chegando de longe, a 400 km de distância. À francesa: "Não vivo mais aí".
Sem festas de despedida, sem abraços, sem presentes, sem promessas. Vão pra Lôca, pro cinza, Cemitério de Automóveis, Mercearia São Pedro, cortes de cabelo assimétricos, inverno sério, digno de cachecol e sobretudo, vão.
Pra mim encerra-se a picuinha bairrista centenária: São Paulo, de fato, é melhor do que o Rio agora que vocês estão lá.
Os que sobramos na cidade fantasma reconhecemos meia dúzia de rostos e mais ninguém. Qualquer dia também fugiremos, vão arrumando o sofá pra gente dormir na sala.
Outros irão pro exterior, não lhes bastará distância pouca. Como se fosse necessário esvaziar um país inteiro para que ele se reconstrua sozinho. Não se pode culpá-los também. Talvez, num lance inédito da história mundial, o poder regenerativo do Brasil prescinda de pessoas para se pôr em ação.
Aos que partem, portanto, boa cidade nova. E um refrão do Antonio Cícero que a gente ouvia no rádio, na famigerada década de 80: "Você me abre seus braços/ e a gente faz um país".


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