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CECILIA GIANNETTI
De mudança
São Paulo atrai com tudo o que o Rio não tem mais desde que começou a deixar de ser mercado para ser balneário
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QUANDO SÃO Paulo me rouba
um amigo, engulo em seco e
minto: não é o fim da picada,
vamos nos visitar. Aí São Paulo -gigante, esperta, não dá pra brigar
com ela- vai e me rouba outro.
Ameaça carregar mais.
Ultrapassa qualquer lugar do Brasil nesse esporte cruel de tragar filhos do balneariozinho macabro de
onde teclo, de levar embora quem
me torna suportável o exercício diário de encarar as mesmas calçadas
esburacadas.
O abominável excesso de adjetivos hoje não é tentativa de vingança
contra São Paulo: é reação que não
posso evitar quando essa cidade
adota mais um dos meus. Cuspo adjetivos, advérbios; melhor do que
chorar, verbo copioso. Autodestrutiva, uso até o ponto-e-vírgula, coisa
que Kurt Vonnegut enquadrava como crime.
Brasília até hoje só me levou um
amigo (tinha ambição de diplomata,
fazer o quê, prendê-lo ao pé da mesa?), contra a legião que migra para
SP agora no que me parece uma revoada. Meus anjos todos se mandando daqui.
Marketing, tecnologia, assessorias, bons salários. Empregos! Nenhum desses ex-cariocas que conheço mudou-se por amor. Nenhum deles conheceu uma moça
("os cornos da Audrey Hepburn")
num centro cultural da Paulista e ficou. Fala mais alto a primeira necessidade, apelido do dinheiro, que não é chique mencionar. Quem pode
culpá-los? Não os cariocas.
São Paulo atrai com tudo o que o
Rio de Janeiro não tem mais desde
que começou a deixar de ser mercado para se tornar quase exclusivamente balneário (macabro, macabríssimo), sem que essa transformação resultasse em grandes saltos positivos para o turismo local. Pelo contrário, a turistada também há de
fugir.
Péra lá, aqui ficam poucos e bons.
Mas até quando? Nem quero pensar
nisso. Prefiro ser pega de surpresa,
com a notícia chegando de longe, a
400 km de distância. À francesa:
"Não vivo mais aí".
Sem festas de despedida, sem
abraços, sem presentes, sem promessas. Vão pra Lôca, pro cinza, Cemitério de Automóveis, Mercearia
São Pedro, cortes de cabelo assimétricos, inverno sério, digno de cachecol e sobretudo, vão.
Pra mim encerra-se a picuinha
bairrista centenária: São Paulo, de
fato, é melhor do que o Rio agora que
vocês estão lá.
Os que sobramos na cidade fantasma reconhecemos meia dúzia de
rostos e mais ninguém. Qualquer
dia também fugiremos, vão arrumando o sofá pra gente dormir na
sala.
Outros irão pro exterior, não lhes
bastará distância pouca. Como se
fosse necessário esvaziar um país inteiro para que ele se reconstrua sozinho. Não se pode culpá-los também.
Talvez, num lance inédito da história mundial, o poder regenerativo do
Brasil prescinda de pessoas para se
pôr em ação.
Aos que partem, portanto, boa cidade nova. E um refrão do Antonio
Cícero que a gente ouvia no rádio, na
famigerada década de 80: "Você me
abre seus braços/ e a gente faz um
país".
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