São Paulo, quinta-feira, 19 de junho de 2008

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Memória/Cyd Charisse

Ela pôs o mundo de ponta-cabeça

"Femme fatale" de filmes como "A Roda da Fortuna" e "Cantando na Chuva" morreu anteontem

CRÍTICO DA FOLHA

Primeiro houve Ginger Rogers, que nos anos 30 parecia capaz de harmonizar cada um de seus movimentos aos de seu partner, Fred Astaire. Depois vieram Eleanor Powell e seu incrível sorriso, Ann-Miller, ou mesmo a rainha das piscinas, Esther Williams. Com aquela energia de cheerleader do pós-guerra, comandavam a sensualidade ligeira e arrebatadora dos grandes musicais da Metro, como que mostrando ao mundo a vitalidade da cultura americana. Depois é que veio Cyd Charisse.
Se começou a surgir nos anos 40, inclusive com uma breve aparição em "Ziegfeld Follies", na versão de 1946, foi na década seguinte que impôs seu tipo. Em vez da bailarina agitada de tantos musicais, o que se via na tela era a imagem madura de uma mulher em quem beleza e mistério se equivaliam.
Foi assim em "Broadway Melody", o célebre número de "Cantando na Chuva" (1952), em que aparece ao lado de Gene Kelly, que também co-dirigiu o filme com Stanley Donen: podia lembrar Louise Brooks, pelo corte de cabelo, ou uma garota de gângster, pela gestualidade -compunha, de todo modo, uma magnífica caricatura da "femme fatale" que nunca foi na vida real (bem ao contrário, seu segundo casamento, com o cantor Tony Martin, durou mais de meio século).
Seja como for, quando joga sua perna para o alto, não há na platéia quem, até hoje, não sinta o mundo virar de ponta-cabeça. Nada mau para essa garota nascida em 1921, em Amarillo, Texas, com o nome de Tula Ellice Flinkea, e que começou a estudar balé na infância para se tratar das decorrências de uma poliomielite.
Embora se tratasse de um número mudo, "Broadway Melody" foi mais do que suficiente para que suas qualidades de bailarina, a beleza do rosto e, em particular, das pernas, fossem notadas e alçadas, no ano seguinte, ao primeiro papel feminino de "A Roda da Fortuna", talvez a obra-prima de Vincente Minnelli em matéria de musicais, e ela entrasse de uma vez por todas para a lista das principais estrelas de Arthur Freed, o produtor dos grandes musicais da MGM.
Fred Astaire, no mais, mostrou-se encantado de estar com ela em "Dançando no Escuro", um dos números mais célebres do gênero, em que Charisse impôs sua gestualidade firme e ao mesmo tempo delicada. Em seguida, ela encadeia "A Lenda dos Beijos Roubados" (1954), com Minnelli, e "Dançando nas Nuvens" (1955), com Kelly e Donen.

"Meias de Seda"
A série de aparições notáveis em musicais esgota-se provavelmente em "Meias de Seda" (1957), de Rouben Mamoulian, musical muito agradável, mas não genial como "Ninotchka", a comédia em que se inspira e que Ernst Lubitsch havia dirigido logo antes da Segunda Guerra Mundial. Na verdade, a era dos grandes musicais estava agonizando.
Charisse procurou se afirmar como atriz dramática, e em alguns momentos com brilho, como no notável "A Bela do Bas-Fond" (1958), de Nicholas Ray, em que faz com desenvoltura a garota de programa que tenta mudar a vida do advogado de um gângster. Mas é um pouco como se, tendo marcado tanto como bailarina, já não fosse possível voltar atrás. A participação em "A Cidade dos Desiludidos" (1962), um drama dirigido por Minnelli, podia ser o sinal definitivo da transformação em atriz, mas é antes de tudo sintomática de seu declínio, pois é de uma Hollywood decadente e de semideuses crepusculares que trata o belo filme. (INACIO ARAUJO)


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