São Paulo, quinta-feira, 19 de junho de 2008

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NINA HORTA

Uma intrusa na casa do banqueiro

Pôs-se a andar como se tivesse medo de escorregar. Foi saindo confusa, procurando um buraco

RUMEI PARA o ensaio de uma festa. O que é um ensaio? É um simulacro do que vai acontecer no dia seguinte. Não há ensaios da noiva entrando na igreja, provas do vestido, "rehearsals" de músicas, de shows, por que não haveria um do almoço de gala? Afinal, até o presidente da República é capaz de vir, prometeram e desprometeram, mas nunca se sabe com certeza absoluta. O senador vem.
Tudo feito para evitar imprevistos. Por mais cedo que você chegue, está sujeito a surpresas. Afinal, são detalhes demais, muitas flores, muitas vasilhas para caber em mesas e aparadores de laca cor de vinho. E o tempo, o tempo, é melhor já deixar algumas coisas prontas, ou ensaiar, porque na hora já se sabe tudo.
Chegamos desavisadas. O apartamento é daquelas fortalezas dos Jardins em que os porteiros não estão lá para facilitar a sua entrada, como seria de prever. Estão lá para desconfiar que o Bin Laden chegou, disfarçado de Dona Benta. E governam seus mundinhos de dentro de gaiolas. Primeira gaiola, segunda gaiola, corredor estreito, tomam nota dos nomes, dos CICs, mordendo o lápis em dificuldade insana. E, aí, depois de muito esperar pelo material, que também passa por suspeitas, pois cozinha tem muita faca, quase não sobra tempo para o ensaio.
A idéia é que a comida seja brasileira, com uns toques delicados de fusão com outras terras, mas as flores são francesas, vieram do Midi.
São lavanda, e não a lavanda que já temos aqui, não. Veio cheirosinha, de avião, morta de medo. Lilás, só o nome já é uma estranheza, e mais flores de alcachofra de um roxo profundo. Vamos convir que os arranjos são lindos, são perfeitos.
E estendemos sobre a mesa as esteiras de bananeira que vão dar o choque, "épater", fazer a diferença, a casa tão transada, tão cheia de objetos nobres, chic, chic, um pouco igual a tudo que é muito rico. As paredes recobertas de quadros de museu, e as esteiras, artesanais, vindas do norte, novinhas em folha, ainda sem abrir, amarradas por junco.
E aí, então, pasmem, já contei esta história no Basílico (mas cuidado, leitores atentos, sem repetir uma palavrinha que seja. Na minha idade, já cheguei ao conforto do poder contar uma história duas vezes, quanto mais de dez em dez anos...), e não sei porque ela me impressiona. Uma barata aponta as antenas de dentro das esteiras. Feia. É do Pará, grande, com asas, brasileira.
É melhor não dar bandeira, ninguém entenderia como aquela barata apareceu ali, no mais dedetizado dos lugares. Ela parou, estupefata, vinda diretamente do chão craquelento, do calor, e, de repente, toda aquela informação nova, Paris, Versailles, aquele mármore branco e preto no chão gelado.
Pôs-se a andar como se tivesse medo de escorregar, sentindo perigo, e foi saindo confusa, destramelada, procurando um buraco escuro e quente.
Nós, as donas da barata, mudas, bico fechado, imóveis. Podia ser o fim da carreira de estilistas de mesa. E ela foi indo, foi indo, até encontrar a maciez do chenile, o conforto da lã.
Amanhã, vamos ter gazpachos com frutas brasileiras, se é que isto existe, um salmão mergulhado em sucos de moqueca, sopas de cambuquira, esparregados de bertalha, lulas com tapioca inspiradas no eñe, amuse-gueules de todas as espécies, desde canapés a pirulitos de parmesão, circulando pela sala. Os garçons, com dólmãs brancos, irrepreensíveis, uma das mãos para trás, servindo champanhe francesa a rodo. As mulheres rebrilhando, furta-cores, os sapatos de salto inacreditável, os decotes generosos, a bolsa de grife, um blush nas bochechas.
Mas nós, nós sabemos, com um certo sobressalto, que a barata está lá, rente ao vaso Gallé. A barata está lá, espreitando a sua hora, ainda muda de espanto. Hospedada na casa do banqueiro, oiweh!!!!


ninahorta@uol.com.br

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