São Paulo, sábado, 19 de julho de 2008

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Crítica/"O Livro das Citações"

A partir de palavras de terceiros, Giannetti segue ideal moderno

Livro de citações de economista e ensaísta reflete sobre a linguagem, o saber, a ética individual e o comportamento cívico

JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA

Aconteceu em 1888. Oscar Wilde, o incomparável, publicava o diálogo "The Critic as Artist" (O Crítico como Artista). E, com deliciosa inteligência paradoxal, Wilde afirmava que para dizermos aquilo em que verdadeiramente acreditamos é preciso falar através de lábios alheios. Eis o programa central da modernidade, extensível a qualquer expressão artística: a noção de "originalidade", sagrada para os românticos, era transformada num palimpsesto criativo em que nada é meu, nada é teu, tudo é nosso. Lembrei essa história com o livro delicioso de Eduardo Giannetti. Livro de citações, sim, mas cautela: existem dois tipos de livros de citações. O primeiro é mero conjunto de frases mais ou menos aleatórias ("Eu só sei que nada sei" etc.), sem qualquer "programa" ou "intenção". O segundo tipo cumpre o que Oscar Wilde determinava: apresentar um pensamento particular através das palavras de terceiros. É o caso de Giannetti. Dividindo a obra em quatro partes, Giannetti "reflete" sobre a linguagem, o saber, a ética individual e o comportamento cívico. E, depois de explanar longamente sobre a inutilidade dos prefácios (Bataille, Goethe, Baudelaire ou Manuel Bandeira ajudam à festa), o autor avança com uma única certeza: a certeza de que todas as certezas contêm em si o germe da sua própria contradição.

Nietzsche onipresente
Mas Giannetti tenta: leitor de Wittgenstein (e de Nietzsche, onipresente no volume), Giannetti ironiza com Cioran ("Uma idéia clara é uma idéia sem futuro", pág. 21) para concluir sobre a importância da legibilidade, base do verdadeiro filosofar. Orwell poderia ser incluído nessa turma. E Giannetti? Em que turma poderia ser incluído? Minha proposta é arriscada. Mas lendo as citações escolhidas, vejo em Giannetti um estóico, no sentido moderno do termo. O que é a felicidade? É não perguntar em que consiste a felicidade, porque existe na interrogação o princípio da infelicidade (Stuart Mill "dixit"). O que é a riqueza? A riqueza é não desejar mais do que aquilo que se tem, conselho central dos clássicos, de Epicuro a Platão. O contrário não é apenas uma causa de infelicidade; a ambição desmedida da acumulação material é, como Baudelaire avisa, a raiz da vulgaridade. Além disso, e como diria Sêneca ao seu discípulo Lucílio, nada é mais importante do que o tempo. Não existe maior riqueza pessoal. Cícero, na página 175, concorda com Giannetti. Ou vice-versa.

Opinião pública
Porque somos nós a origem e o fim dos nossos projetos de vida. Por isso aplaudo a inclusão de Henry Thoreau: "A opinião pública não passa de um anêmico tirano se comparada à nossa própria opinião privada. Aquilo que um homem pensa de si mesmo -é isso que determina, ou antes indica, o seu destino" (pág. 62). Basta essa citação para estabelecer a diferença, nem sempre entendida, entre auto-respeito e auto-estima: auto-estima pressupõe o olhar dos outros sobre nós; auto-respeito pressupõe o nosso olhar sobre nós próprios. Ao contrário do que afirmam os livros de auto-ajuda, só o auto-respeito merece ser cultivado: a opinião alheia é volátil e, muitas vezes, fonte de permanente escravidão. Surpresas? Várias. Fiquei surpreso com a inclusão de dois autores que jamais imaginaria em exercícios aforísticos: Bolingbroke e Juan de Mariana, dois nomes do protoconservadorismo europeu. E depois encontrei frases cuja autoria se perdeu no ruído do tempo. Nassim Taleb afirmou em 2007 que a morte é um bom passo na carreira de um autor (pág. 75); Gore Vidal disse o mesmo, mais de 20 anos antes, quando Truman Capote morreu. Também gostei de saber que Simone de Beauvoir considerava o "pluralismo" uma qualidade própria da direita. "A verdade é una; o erro, múltiplo." (pág. 95) É a receita típica para o fanatismo. Deixo para o fim o momento mais hilário do livro: algumas meditações sobre o excesso de leitura. Será possível que ler em demasia seja prejudicial para qualquer intelecto humano? Descartes aconselhava a que jamais se excedessem os 45 minutos de filosofia por dia. Giannetti cita, entre outros, Lichtenberg: "Creio que alguns de nossos scholars realmente medíocres poderiam ter chegado a ser homens mais grandiosos caso não tivessem lido em demasia". (pág. 26) Com o devido respeito a Giannetti, sugiro para inclusão futura um comentário do ditador português Oliveira Salazar que, confrontado com os ardores filosóficos (e democráticos) de um opositor, afirmava: "Esse rapaz é demasiado culto para a inteligência que possui". Que pena Salazar não se ter dedicado simplesmente ao aforismo...

O LIVRO DAS CITAÇÕES - BREVIÁRIO DAS IDÉIAS REPLICANTES
Autor: Eduardo Giannetti
Tradução: vários
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 49 (464 págs.)
Avaliação: ótimo



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