São Paulo, sábado, 19 de julho de 2008

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crítica

Jornalismo razoável se une a frágil literatura

TEIXEIRA COELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O que o sucesso de um falsário primeiro demonstra é o fracasso da idéia de arte, derrotada pela cultura. Quando o valor de uma obra depende do reconhecimento do nome do autor, é sinal que a cultura (a mera informação, o hábito, as idéias feitas) se pôs diante da arte e oculta sua percepção. Nesse caso, o logro existe quer a obra seja "autêntica" ou "falsa", quer o logrado seja o crítico ou o visitante comum do museu. Mas o que é um "falso", em arte? Durante séculos, colecionadores encomendaram a cópia de obras que apreciavam. Se a cópia era tão boa quanto o original, tudo bem. O valor, a virtude, não estava na originalidade mas no "bem fazer" (como fez Boucher ao copiar magnificamente um magnífico Veronese: o resultado está no Masp). De uma orquestra que execute um Beethoven tão bem quanto outra não se diz que está falsificando ou copiando esta. Há escassas razões para mudar a argumentação quando se muda de arte. Orson Welles tem razão em "F for Fake": "A arte é, em si mesma, verdadeira". E o que busca quem faz uma cópia ou "pinta ao modo de" alguém que já morreu, como Van Meegeren, o "falsário" deste livro? Dinheiro? Vingança contra "críticos insensíveis"? (Crítico sensível é aquele que gosta do que faço.) Obsessão pela mentira? Pode ser. Mas, também, como todo artista "verdadeiro", o desejo de ter a própria obra apreciada pelo único juiz que interessa: algum artista do passado que se admirava, cujas telas ou livros gostaríamos de ter feito. Ser reconhecido pelo presente, pelo futuro, está bem. Melhor é ser admirado pelo antecessor. O que mais recompensa Van Meegeren é ver seu "falso" pendurado na parede do museu ao lado dos grandes do passado. Velhos mestres não podem ter consciência do novo; mas o mundo todo os verá ao lado da nova obra, "falsa" ou "real" -e é "como se". Tal como no "livro perfeito" de Bioy Casares, "A Invenção de Morel", em que o personagem se coloca dentro do filme em que aparece sua amada, depois de lhe ter estudado os gestos e as falas, dando a quem depois visse o filme a impressão de que os dois estiveram juntos quando "na verdade" ela nunca o conheceu porque existiu antes dele... A questão do "falso" e do "verdadeiro" não é central apenas na arte: é central nesta cultura pelo menos desde Platão e seu mito da caverna. Questão bem mais complicada do que faz supor esse livro, misto de jornalismo razoável e frágil literatura que conta a história de um holandês que fazia Vermeers. O livro prende a atenção nos trechos em que narra o processo de falsificação, que levou seis anos, e é exemplo da rala literatura de massa quando ficcionaliza passagens da vida do falsário. Há um aspecto curioso nesse livro, apropriado a seu tema. A primeira edição em inglês, em capa dura, mais cara, veio com o título (em tradução) "Eu Fui Vermeer: Ascensão e Queda do Maior Falsário do Século 20". Quando o livro saiu na barata e massificada edição de bolso, o título passou a ser aquele que a edição brasileira preferiu. Parece que a massa precisa de uma isca a mais. É curioso porque, se a venda de um "falso" de Van Meegeren aos nazistas deu origem à descoberta posterior de seus feitos, essa é uma parte menor do livro, centrado em coisas mais vitais que aconteceram antes: como o "falsário" trabalhou, como "enganou" críticos e museus (mas, a arte não é sempre verdadeira?), como reagiram suas "vítimas". O título original do livro (o título "verdadeiro"?) é mais apropriado. É curioso. Talvez pertinente.

TEIXEIRA COELHO é curador-chefe do Masp.

EU FUI VERMEER: A LENDA DO FALSÁRIO QUE ENGANOU OS NAZISTAS
Autor: Frank Wynne
Tradução: Hildegard Feist
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 39 (304 págs.)
Avaliação: regular

NA INTERNET
www.folha.com.br/081995
leia trecho do livro



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