São Paulo, sábado, 19 de julho de 2008

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RODAPÉ LITERÁRIO

Picadinho no picadeiro


O flanco aberto do livro está na observação superficial do próprio umbigo, embalada por extrema autocomplacência


FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

"ANTES DO CIRCO" , livro de contos do jornalista Jerônimo Teixeira, gaúcho radicado em São Paulo, chegando aos 40 anos, apóia-se em doses idênticas de insólito e cotidiano, vazadas numa escrita que gira em torno de si, auto-referente, irônica e repleta de piscadelas sabidas.
Pelo insólito, respondem narrativas breves como a que intitula o livro, na qual o narrador anônimo confronta um ofegante animal grotesco e se pergunta sobre sua culpa original (haveria vida antes das jaulas?), ou "Páginas Arrancadas de um Tratado de Estética", com seu artista não da fome, mas do assassinato em série, encenado diante de uma platéia de potenciais vítimas embevecidas.
Da mesma família, a da estranheza invasora do dia-a-dia, é "Onde a Sombra Bebe Café" -história de duplos urbanos, à moda de Poe, em que um dono de bar, obcecado pela rotina desconhecida de um freguês metódico, lacônico e pontual, acaba se vendo deslocado para o outro lado do balcão- e a sátira política, um tanto surrada, de "Melancólica Morte de um Comunista", em que um jurássico remanescente da velha esquerda vira mártir involuntário de uma revolução no melhor estilo "o rato que ruge".
O flanco aberto do livro não está nesse real hiperbólico e perturbado, que se dilui na safra recente de contistas brasileiros, mas na observação superficial do próprio umbigo (o mundo das letras, da academia, das editoras e do jornalismo cultural incluídos), embalada por uma extrema autocomplacência, disfarçada em ferina autocrítica.
Contos como "Deus em Porto Alegre" (em torno de um repórter escalado para cobrir um show de João Gilberto), "Unheimlich" (sobre as agruras da passagem da idéia ou do tema, no caso, uma história de terror memorável, à forma) ou "Pedacinho do Céu", uma história de amores e projetos de juventude abortados, desenham um narrador também juvenil, entre seus cacos de erudição (procedimentos, autores e versos citados com função ornamental), seu apego às próprias credenciais e trajetória, mais aludidas ("sei do que falo, sou do ramo") do que incorporadas ao texto (como matéria narrativa, conflituosa), sua busca por confirmação no aconchego do grupo, a cumplicidade dos amigos escritores passando a valer por fiança da própria vocação.
Assim, o que no "Famigerado", de Guimarães Rosa, tem a graça da forma anedótica e o peso do encontro entre dois Brasis (o do médico douto e o do jagunço violento) apanhado no ar, mediado pela palavra incomum e o desconcerto que ela desperta no homem do povo, em "Gigolo Ivre" é pedante brincadeira de quem já leu Rimbaud, lastro pouco para um autor dizer a que veio.

ANTES DO CIRCO
Autor: Jerônimo Teixeira
Editora: Record
Quanto: R$ 28 (128 págs.)
Avaliação: ruim



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