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COMENTÁRIO
O país das cotas e do genocídio
DEMÉTRIO MAGNOLI
COLUNISTA DA FOLHA
Censo, documento, vingança,
genocídio. "Hotel Ruanda"
retrata a última etapa do trágico
percurso de um dos lugares mais
lindos que existem sobre a Terra,
Ruanda, o "país das mil colinas".
Entre abril e julho de 1994, milícias hutus, com ajuda do Exército
e da criminosa omissão das potências mundiais, assassinam
com facões quase 1 milhão de tutsis. O filme narra o massacre a
partir do ponto de vista do gerente hutu de um hotel internacional
da capital, Kigali, que deu abrigo e
salvou as vidas de mais de 1.200
tutsis.
Hutus e tutsis não se distinguem
pela aparência, pela língua ou pela
cultura. As duas "etnias" foram
inventadas pelo poder colonial
europeu.
Os alemães e depois os belgas
encontraram uma sociedade organizada em torno de um mwami, rei de caráter sagrado, cuja autoridade se baseava numa aristocracia de proprietários de rebanhos (os tutsis) que subordinava
a massa de camponeses (os hutus). Toda a sociedade ligava-se
por laços de dependência pessoal,
que asseguravam uma certa coesão e isolaram a região das redes
de caça ao homem e tráfico de escravos. Os belgas, que estabelecem seu protetorado em 1918, se
apropriaram dessa ordem tradicional para implantar uma administração autóctone apoiada num
funcionalismo tutsi.
Tudo começou com o censo,
que registrou as duas "etnias".
Em 1926, o governo colonial emitiu documentos de identidade
com os rótulos "tutsi" e "hutu".
Dividindo legalmente os ruandeses, a máquina burocrática da metrópole colonial transformou grupos sociais tradicionais em etnias
contrapostas.
Etnólogos e historiadores deram a sua contribuição, fabricando "cientificamente" narrativas
sobre as origens e migrações dos
dois grupos. Manuais vulgares repetem, até hoje, essas narrativas
históricas. Os sábios europeus
também "provaram" que os tutsis
são mais altos e exibem porte
mais elegante e narizes mais finos
que os hutus.
A independência, em 1961,
transferiu o poder de Estado para
os hutus e irrigou a árvore da vingança. O novo regime, apoiado
num Exército hutu, confiscou terras de pastagens e as entregou a
agricultores. Os tutsis desapropriados fugiram para Uganda e
Burundi e organizaram a Frente
Patriótica Ruandesa (FPR).
Em 1973, o golpe militar do general Juvenal Habyarimana radicalizou o conflito. O Estado implantou um sistema de cotas que
assegurava o preenchimento da
maioria das vagas nos órgãos públicos e nas universidades por hutus. À sombra do Exército, surgiram milícias hutus que pregavam
a "reparação histórica", isto é, a
limpeza étnica.
Eventualmente, Habyarimana
afastou-se do programa do "poder hutu" e firmou, em 1993, um
acordo de paz com os rebeldes
tutsis. Em 6 de abril de 1994, véspera da assinatura de um acordo
de divisão de poder governamental com a FPR, um míssil abateu o
avião que transportava Habyarimana. Os rebeldes foram acusados pelo atentado, provavelmente
cometido pela milícia hutu Interahamwe ("aqueles que lutam
juntos"). Era a senha do massacre: as cem "noites dos facões" dizimaram cerca de 80% dos tutsis
que residiam no país. A irrupção
das tropas vitoriosas da FPR interrompeu o genocídio.
A história nem sempre se repete. O novo poder cortou a árvore
da vingança, criou um governo de
coalizão nacional e, há dois anos,
promoveu eleições gerais. As carteiras de identidade étnica foram
jogadas no lixo e nenhum documento pode trazer as palavras
"hutu" e "tutsi". Hoje, todos são
apenas ruandeses.
"Hotel Ruanda" é uma reflexão
de valor universal sobre a produção oficial de identidades "raciais" ou "étnicas". Sugiro que os
distribuidores do filme emitam
convites especiais para o presidente Lula, a ministra das cotas
raciais, Matilde Ribeiro, a comissão do vestibular da Universidade
de Brasília, que fotografa candidatos para comprovar sua negritude, e os responsáveis pelo censo
escolar racial de 2005.
Demétrio Magnoli, colunista da Folha,
é doutor em geografia humana pela USP
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