São Paulo, sexta-feira, 19 de agosto de 2005

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COMENTÁRIO

O país das cotas e do genocídio

DEMÉTRIO MAGNOLI
COLUNISTA DA FOLHA

Censo, documento, vingança, genocídio. "Hotel Ruanda" retrata a última etapa do trágico percurso de um dos lugares mais lindos que existem sobre a Terra, Ruanda, o "país das mil colinas".
Entre abril e julho de 1994, milícias hutus, com ajuda do Exército e da criminosa omissão das potências mundiais, assassinam com facões quase 1 milhão de tutsis. O filme narra o massacre a partir do ponto de vista do gerente hutu de um hotel internacional da capital, Kigali, que deu abrigo e salvou as vidas de mais de 1.200 tutsis.
Hutus e tutsis não se distinguem pela aparência, pela língua ou pela cultura. As duas "etnias" foram inventadas pelo poder colonial europeu.
Os alemães e depois os belgas encontraram uma sociedade organizada em torno de um mwami, rei de caráter sagrado, cuja autoridade se baseava numa aristocracia de proprietários de rebanhos (os tutsis) que subordinava a massa de camponeses (os hutus). Toda a sociedade ligava-se por laços de dependência pessoal, que asseguravam uma certa coesão e isolaram a região das redes de caça ao homem e tráfico de escravos. Os belgas, que estabelecem seu protetorado em 1918, se apropriaram dessa ordem tradicional para implantar uma administração autóctone apoiada num funcionalismo tutsi.
Tudo começou com o censo, que registrou as duas "etnias". Em 1926, o governo colonial emitiu documentos de identidade com os rótulos "tutsi" e "hutu". Dividindo legalmente os ruandeses, a máquina burocrática da metrópole colonial transformou grupos sociais tradicionais em etnias contrapostas.
Etnólogos e historiadores deram a sua contribuição, fabricando "cientificamente" narrativas sobre as origens e migrações dos dois grupos. Manuais vulgares repetem, até hoje, essas narrativas históricas. Os sábios europeus também "provaram" que os tutsis são mais altos e exibem porte mais elegante e narizes mais finos que os hutus.
A independência, em 1961, transferiu o poder de Estado para os hutus e irrigou a árvore da vingança. O novo regime, apoiado num Exército hutu, confiscou terras de pastagens e as entregou a agricultores. Os tutsis desapropriados fugiram para Uganda e Burundi e organizaram a Frente Patriótica Ruandesa (FPR).
Em 1973, o golpe militar do general Juvenal Habyarimana radicalizou o conflito. O Estado implantou um sistema de cotas que assegurava o preenchimento da maioria das vagas nos órgãos públicos e nas universidades por hutus. À sombra do Exército, surgiram milícias hutus que pregavam a "reparação histórica", isto é, a limpeza étnica.
Eventualmente, Habyarimana afastou-se do programa do "poder hutu" e firmou, em 1993, um acordo de paz com os rebeldes tutsis. Em 6 de abril de 1994, véspera da assinatura de um acordo de divisão de poder governamental com a FPR, um míssil abateu o avião que transportava Habyarimana. Os rebeldes foram acusados pelo atentado, provavelmente cometido pela milícia hutu Interahamwe ("aqueles que lutam juntos"). Era a senha do massacre: as cem "noites dos facões" dizimaram cerca de 80% dos tutsis que residiam no país. A irrupção das tropas vitoriosas da FPR interrompeu o genocídio.
A história nem sempre se repete. O novo poder cortou a árvore da vingança, criou um governo de coalizão nacional e, há dois anos, promoveu eleições gerais. As carteiras de identidade étnica foram jogadas no lixo e nenhum documento pode trazer as palavras "hutu" e "tutsi". Hoje, todos são apenas ruandeses.
"Hotel Ruanda" é uma reflexão de valor universal sobre a produção oficial de identidades "raciais" ou "étnicas". Sugiro que os distribuidores do filme emitam convites especiais para o presidente Lula, a ministra das cotas raciais, Matilde Ribeiro, a comissão do vestibular da Universidade de Brasília, que fotografa candidatos para comprovar sua negritude, e os responsáveis pelo censo escolar racial de 2005.


Demétrio Magnoli, colunista da Folha, é doutor em geografia humana pela USP

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