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HOLOCAUSTO AFRICANO
Em 1994, o Hôtel des Mille Collines foi ocupado por refugiados tutsis; espaço deve ser leiloado
Marcas da dor povoam palco de "Hotel Ruanda"
MARC LACEY
DO "NEW YORK TIMES", EM KIGALI
Tarde de domingo. Uma garotinha usando bóias pulou na piscina do Hotel Ruanda real, soltando
um gritinho de prazer quando seu
corpo mergulhou na água fria. Ela
era pequena demais para saber
que, dez anos atrás, pessoas desesperadas beberam água dessa
mesma piscina para não morrer.
Na recepção do hotel, um recém-chegado estava sendo recebido com a notícia de que havia
vagas -tudo muito diferente da
situação vigente em 1994, quando
os 113 quartos do hotel estavam
lotados, e o heróico gerente da
época, Paul Rusesabagina, parou
de cobrar diárias dos hóspedes.
Naquele tempo o hotel mais parecia um campo de refugiados,
com alguns quartos abrigando até
dez pessoas, e o saguão e os corredores também repletos de pessoas
e colchonetes.
O Hôtel des Mille Collines conseguiu resistir aos acontecimentos traumáticos de 1994 retratados com tanta força no filme "Hotel Ruanda", mas, como boa parte
do país, não consegue se livrar da
memória do frenesi assassino que
se desencadeou fora de seu jardim
arborizado, deixando 1 milhão ou
mais mortos da etnia tutsi ou hutus de tendência moderada.
Aqui, longe do brilho de Hollywood e da fanfarra da entrega do
Oscar, não existem objetos físicos
que recordem os fatos pavorosos.
Não há placa em homenagem aos
atos de bravura ocorridos aqui.
Nenhum memorial recorda os
ruandeses que não conseguiram
chegar até o estabelecimento.
O hotel, que pertencia à hoje falida companhia aérea belga Sabena, está prestes a ir a leilão. A idéia
prevalecente é que os potenciais
compradores estarão mais interessados em renovar o imóvel de
32 anos de idade com vistas a seu
aproveitamento futuro do que em
recordar o passado.
O nome do hotel, Mille Collines,
se deve ao apelido do próprio
país: Ruanda é conhecida como o
"país das mil colinas". Depois que
a paz voltou ao país, os proprietários do hotel substituíram as janelas marcadas por tiros. O lado sul
do hotel de quatro andares foi reformado, de modo que não se vê o
lugar onde um morteiro abriu um
rombo na parede durante os tempos violentos de 94. O Mille Collines voltou a ser um hotel elegante.
Apesar dos esforços feitos para
seguir adiante como hotel de luxo, o Mille Collines continua, até
certo ponto, marcado pelo que
aconteceu dentro de suas paredes
-mesmo porque muitos de seus
funcionários da época continuam
em seus cargos até hoje.
O técnico Abias Musonera, que
em abril e maio de 1994 passou
seis semanas escondido com sua
família no Mille Collines, disse
que jamais esquecerá como sua
mulher, Immaculée, entrou em
trabalho de parto no quarto 216 e
deu à luz um menino. "Ninguém
morreu aqui", disse Musonera,
47. "Deus nos protegeu, Paul nos
protegeu, e todos nós ajudamos
uns aos outros."
Ele recordou como a rotina do
hotel começou a ir por água abaixo quando a violência no país foi
se agravando e o número de pessoas que buscavam refúgio no hotel não parava de aumentar. A
água acabou, a luz parou de funcionar. O gerador quebrou, mergulhando o hotel na escuridão.
O barman Jean Mudadira, 34, se
recorda de estar sobre o telhado
do hotel no dia em que o estabelecimento foi invadido por milicianos hutus. Ele conta que pensou
em saltar do telhado para evitar
uma morte muito mais brutal. Para seu espanto, porém, os matadores o deixaram viver.
A idéia de saltar do telhado do
hotel para evitar o massacre certeiro apareceu no filme "Hotel
Ruanda", que nem Mudadira ou a
maioria dos outros funcionários
do hotel viu. Existem algumas cópias piratas do filme em circulação em Kigali. Quando uma delas
foi exibida recentemente no hotel,
cinco homens se reuniram em
volta de uma tela pequena para
assistir à versão de Hollywood.
Houve alguns risos enquanto
eles apontavam para detalhes
que, afirmaram, os criadores do
filme não reproduziram corretamente, como a aparência dos uniformes militares ou a letra de uma
canção cantada pelas crianças em
um campo de refugiados. Perto
do final do filme, quando rebeldes
liderados por tutsis atacam os militantes hutus que estavam aterrorizando as pessoas retiradas do
Mille Collines, eles aplaudiram.
Ao final, concordaram sobre uma
coisa: o filme vai ajudar os estrangeiros a compreender o que aconteceu em Ruanda, mas de maneira moderada. "É impossível mostrar o que realmente aconteceu",
disse Kenyatta Nkusi-Kabera, 30.
"Ninguém seria capaz de assistir
ao que aconteceu. As pessoas teriam que ficar de olhos fechados."
Tradução Clara Allain
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