São Paulo, sexta-feira, 19 de agosto de 2005

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"ALILA"

Gitai ergue com fraturas um país sólido

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Nos filmes mais conhecidos de Amos Gitai temos visto Israel, até aqui, como Estado de exceção: nas guerras com os vizinhos árabes (1848 e 1973), ou do bairro dos fanáticos religiosos.
"Alila" nos traz uma outra perspectiva. Israel é, aqui, um país de imigrantes chineses ilegais parados na esquina à espera de trabalho, de jovens dispostos a desertar do serviço militar, de brigas de vizinhos. Um país com cidades. Tel Aviv, no caso, com sua arquitetura, suas cores, cortiços, praças. Um país normal, ou quase.
Quase porque, visto de perto, nenhum país é normal, e Israel tem peculiaridades que chamam a atenção. Uma delas: um sobrevivente do Holocausto talvez seja reverenciado em outro país. Afinal, todos se culpam um pouco pelo que aconteceu na Segunda Guerra. Para a vizinha que constrói um puxadinho ilegal no apartamento ao lado do sobrevivente Schwartz, nada disso: é apenas um velho incômodo que reclama do barulho de sua obra. Essa vizinha, por sinal, trabalha na polícia.
Nessa mesma construção, o militar Hezi alugou um quarto para ter relações com sua amante, Gabi. Aqui, o que importam são os mistérios. Hezi encontra-se com Gabi quando quer, exige-lhe que não faça perguntas. Mas Gabi insiste em gritar durante a relação sexual, de maneira que meia Tel Aviv está a par da vida do casal.
Existem ainda Ezra, empreiteiro recém-divorciado, e Gabi, sua mulher. Ou melhor: Ezra, Gabi e ainda Eyal, o filho desertor...
Essa quantidade de personagens poderia tender à crônica mais ou menos colorida, mas também inconseqüente sobre a vida numa cidade. Gitai está longe de permitir que isso aconteça. Além de darem conta de uma cidade israelense em pleno funcionamento, essas histórias dão conta de relações de força, de disputas mais ou menos permanentes.
São assim as relações entre Hezi e Gabi, ex-marido e ex-mulher, o pai patriota e o filho desertor. Porque esse país em conflito mais ou menos perpétuo com seus vizinhos árabes também vive disputas internas de que nem sempre temos conhecimento. O conflito talvez seja a alma de Israel -essa a questão de um país que abriga gente do mundo todo, entre judeus e não-judeus: tradições e experiências diferentes que têm de se acomodar no mesmo espaço.
O desafio de mostrar esse país normalizado não era pequeno. Amos Gitai enfrentou-o, como de costume, a poder de planos longos, calmos, de uma observação paciente e acolhedora de alguns de seus habitantes. Chegamos ao final com a imagem surpreendente de um país ao mesmo tempo sólido e cheio de fraturas, dotado de uma normalidade que parece se fazer da somatória de várias patologias e de uma vitalidade que parece derivar dessas patologias.
"Alila" é uma beleza porque, num mundo em que a idéia de nação parece cada vez mais problemática, nos coloca diante da mais problemática das nações e, no entanto, nos conduz por esse labirinto através de um caminho límpido. Límpido, isto é, não-autoritário e aberto aos significados.


Alila
Alila
    
Direção: Amos Gitai
Produção: Israel, 2003
Com: Yaël Abecassis, Ronit Elkabetz
Quando: a partir de hoje no Espaço Unibanco e Lumière


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