São Paulo, quinta-feira, 19 de agosto de 2010

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NINA HORTA

Infância


As mangueiras são árvores escuras, sombrias; as goiabeiras são do bem, feitas para criança trepar

TEM GENTE que não sabe direito onde nasceu, se sente uma fraude. Mineira de 12 dias? Carioca até os cinco? Paulista de uma vida inteira?
Ou o quê? Acho que somos a época e o lugar que mais se entranhou na nossa pele. A infância. Quando os cheiros entram pelo cérebro, cada piaba é uma surpresa viva, estourando no ar, a pimenta fura, a manga tem um caldo tão bom que sabe à primeira manga. Eva caipira num mundo de capim pisado, a fumaça da lenha nos poros.
Em Florestal era tudo tão simples, o milho e o fubá, a couve, a galinha ensopada, o quiabo, nada demais, tudo sem comentários, o torresmo, o palmito, o palmito batidinho bem fino, só posto no caldo da galinha. E os doces de cidra, de mamão verde, o queijo muito branco e fresco soltando soro e as frutas no quintal.
A goiaba, aquela de vez sem cheiro, com o gosto elevado a mil na sua acidez, as sementes duras, engolidas inteiras. (A Rita Lobo e o Matinas pensam que eu gosto de goiabada. Odeio.) Não gosto muito de doce nenhum, quer saber.
E a lima de bico encostando no chão atrás da cerca de arame e, de vez em quando, uma bananeira perdida. As mangueiras são árvores que impressionam, escuras, escorreguentas, sombrias, enquanto as goiabeiras são do bem, feitas para criança trepar, ramos abertos, espalhados, claros.
A comida não era assunto como é agora. Bom para a pele, bom para o fígado; não, tudo era bom para tudo, não se conversava sobre comida como remédio. E não havia nomes especiais inventados para carne, arroz, feijão, farofa. "Escondidinho".
Gente, como tenho implicância de escondidinho. E basta uma pessoa falar que as outras vão atrás, entra na língua. Desconfio que debaixo desse angu tem carne. Devia se chamar desconfiadinho.
Existiriam outros pomares pojados de jaboticabas, mas esses eram em São Paulo, nunca vi jaboticaba em Minas, férias de julho e janeiro. A infância tinha um contato muito íntimo com o miúdo, as coisas pequenas, a casinha, a panelinha, a comidinha, a boneca feita de galho e vestida de folha, as formigas cortadeiras, as joaninhas, os lambaris.
A cozinha era sem comentários, já contei mil vezes. Muito alta -enormes armários de madeira escura, fechados, guardando biscoitos e compotas-, atravessada por vigas negras. O fogão de lenha e o riacho. Verdade, passava um riacho na cozinha, sim senhores, dentro dela, embaixo do telhado de telhas vãs. Riacho claro, transparente, buliçoso, enroscando-se em pedras.
E as cozinheiras arregaçavam as saias e se punham a lavar a louça e as panelas naquela água corrente, os patos comendo os restos de comida, brigando pela rapa do prato.
O susto de descobrir a pobreza e a dor, a casa de um cômodo só, chão de terra batida e de repente você, na porta, uma Alice enorme, muito branca e gorda, loura e corada, fazendo sombra naquela menina de pernas atrofiadas que se arrastava no chão.
O frango viado entrou pela porta adentro com o pescoço empinado para trás, asas também, correndo na ponta dos pés e tropeçou nela. A menina salvou tudo, nos olhou, vesga, a baba no canto da boca, e grunhiu: "Eita, povo feio!".
E de onde não havia nada saímos com um ovo azul e um broto de bambu rei. Acho que meu passaporte de mineira vem daí, com muito orgulho.

ninahorta@uol.com.br


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