São Paulo, quarta-feira, 19 de setembro de 2001

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O "outro" é o novo dono da MPB, segundo conclusões da academia

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

O objetivo era pensar a república brasileira pelo viés de sua música popular e no visor de profissionais de fora da música, como sociólogos, filósofos, antropólogos e cientistas políticos. Surpreendente, no seminário "Decantando a República", desenvolvido na PUC do Rio de Janeiro ao longo da semana passada, foi o enfoque não na reflexão sobre a história da "música popular republicana", mas antes sobre o atual momento que ela vive.
Assim, painéis apoiados em Chico Buarque, Paulinho da Viola ou no frevo pernambucano tiveram de conviver com outros tantos debruçados, com maior ou menor intensidade, sobre Chico Science, O Rappa, MV Bill, Racionais MC's, Rappin" Hood, AfroReggae, Seu Jorge, Carlinhos Brown etc.
O tom inicial foi dado na quinta-feira, pela psicanalista Maria Rita Kehl, que dedicou a Chico Science & Nação Zumbi sua reflexão, numa mesa de debate que girava em torno das relações entre as esferas pública e privada na música popular.
Recortando aquela geração pós-anos 90 -bem representada pela Nação Zumbi, de "jovens pobres da periferia de Recife"-, Kehl apontou a mudança de discurso ali representada.
Segundo ela, se a música popular de chicos e caetanos foi produzida por uma geração crítica e universitária que cuidou de refletir, não sem certo distanciamento, sobre os problemas brasileiros, "hoje já não é o pensamento crítico, mas o próprio objeto do pensamento crítico que começa a se manifestar".
"Não se trata mais de um autor falando do "outro". É o "outro" dizendo: "Sou eu, sou assim". Parecer não autoral, no caso dessa geração, é um truque. Há uma recusa ética de ocupar as posições de símbolo sexual, objeto de culto e sujeito que se destaca da massa."
"A postura é "assumo o que digo, mas não importa quem sou", como faz o rapper paulista Rappin" Hood. Já Mano Brown, dos Racionais, diz: "Eu sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no bolso, mas apoiado por 50 mil manos'", continuou.
Kehl exemplificou o deslocamento de que tratava: se nos anos 60 Vinicius de Moraes e Baden Powell enumeravam, em "Samba da Bênção", a linhagem de nobreza negra do samba a que pretendiam se integrar, hoje os Racionais MC's também fazem sua enumeração, mas trocando nomes de pessoas e influências por uma longa lista geográfica, que passa por Jardim Ângela, Jardim Miriam, Capão Redondo etc.
"O descaso desta república com o espaço público traz uma exposição absoluta, em que nada sobra para a privacidade. O artista tem que lidar com aquilo com que o poder público deveria lidar, e a dimensão privada dos miseráveis desaparece", concluiu.

Escombros do malandro
Um dia depois, tal temática retornou em debate sobre "cidadãos e párias", na exposição do sociólogo Jessé de Souza, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (instituição que organizou o seminário, em conjunto com a PUC-RJ e a Universidade Federal de Minas Gerais).
O pesquisador rejeitou a permanência da "fantasia" do malandro como símbolo nacional -tal figura estaria "em escombros", segundo ele-, para então se remeter ao estudo do caso do violento rapper carioca MV Bill.
"Agora não existe mais malandro, nem mané. Só o otário, a vítima marcada para morrer. Pela primeira vez, o pária fala com voz própria. Está numa vanguarda crítica que ainda não tem contraponto erudito ou político", disse.
O seminário "Decantando a República", coordenado pelos núcleos de pesquisa de Heloísa Murgel Starling (UFMG), Berenice Cavalcante (PUC-RJ) e José Eisenberg (Iuperj), será transformado em livro ainda em negociação com editoras, para lançamento no próximo ano.


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