São Paulo, quarta-feira, 19 de setembro de 2007

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"Clima é mais adverso" para o cinema atual, diz Ismail Xavier

Professor, que relança ensaio "Sertão Mar" (1983), sobre obras de Glauber Rocha, avalia que produção nacional fez "ajuste de ambições, em novo patamar"

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Com o livro "Sertão Mar", o professor e crítico de cinema Ismail Xavier esquadrinhou o fenômeno do cinema novo, pela análise da obra de seu maior autor, Glauber Rocha (1939-81), e de sua crença numa "estética da fome" como vetor para uma cinematografia nacional com traço próprio e consonância com a trajetória do país.
Escrito em 1983, "Sertão Mar" tornou-se um ensaio obrigatório ao estudo de um aspecto relevante da cultura brasileira, mas estava inacessível a novos leitores, já que os exemplares esgotaram nas livrarias.
Esse paradoxo deixou de existir neste mês, em que "Sertão Mar" (232 páginas, R$ 49) ganhou reedição da Cosac Naify. Um quarto de século após seu lançamento, "Sertão Mar" oferece ocasião para refletir sobre o cinema brasileiro de hoje, conforme Xavier atesta, na entrevista a seguir, que concedeu à Folha antes de partir para uma temporada de três meses na Inglaterra, como professor visitante nas universidades de Leeds, Manchester e Londres.

 

FOLHA - "Sertão Mar" estabelece um contraponto entre a obra de Glauber Rocha e a de seus contemporâneos. Se fosse delinear um contraponto de "Barravento" e "Deus e o Diabo na Terra do Sol" com a geração que sucedeu Glauber, que títulos seriam candidatos a esse cotejo?
ISMAIL XAVIER -
Há uma diferença. As questões presentes em "Barravento" foram muito trabalhadas pelo cinema dos anos 70 e 80, a partir de filmes que trabalharam a religião afro-brasileira, de "Amuleto de Ogum" a "Xica da Silva". Estes e outros filmes geram cotejos possíveis, mas não vejo agora no contemporâneo um contraponto tão nítido como aquele trazido pelas formas novas de se pensar o sertão.
Essas formas são variadas, mas o cotejo mais interessante se faz entre Glauber e cineastas como Paulo Caldas e Lírio Ferreira, que, em "Baile Perfumado" [1997], trataram o sertão como mundo permeável ao consumo, inserido numa rede de trocas que dissolvem o isolamento necessário em "Deus e o Diabo na Terra do Sol" para que o sertão, como microcosmo fechado, pudesse compor a alegoria do Brasil.
Muda a imagem do cangaceiro, de proto-revolucionário passa à condição de ícone pop. Passamos do tema da revolução pré-figurada no cangaço ao mote do pragmatismo.

FOLHA - O fato de a obra de Glauber ser a grande referência do cinema brasileiro diz respeito ao vulto de sua genialidade ou ao declínio de nossa produção desde então?
XAVIER -
A estatura de Glauber vem da articulação única entre sua forma e o que de social e político continua nela implicado e atual. A conjuntura presente define, para o cinema, outras demandas e outros caminhos, dentro de um esforço de comunicação que tem seus protocolos, com filmes de gênero e roteiros mais ajustados a uma dramaturgia clássica ou ao road movie (como acontece com Walter Salles Junior e outros cineastas que dialogam com Wim Wenders).
Na maioria dos casos, a ênfase tem recaído sobre o aspecto psicológico da experiência. O que não exclui a emergência de talentos afinados à tradição do moderno, como Luiz Fernando Carvalho.
No geral, não sei se cabe falar em declínio. O que houve foi uma mudança de projeto, com um ajuste de ambições em novo patamar, pois o clima é mais adverso e ficou mais difícil capturar o tempo.

FOLHA - Para produzir hoje "uma crítica que mostre a forma estética como decantação da experiência histórica", o que "Sertão Mar" faz, conforme observa o pesquisador Leandro Saraiva no posfácio, é necessário trocar o cinema por outra arte?
XAVIER -
Não. Se você admite a premissa de que há uma relação entre forma estética e experiência histórica, as diferentes formas de expressão certamente estarão nos oferecendo trabalhos que nos desafiam a formular com clareza esse nexo. O cinema não está excluído.
Não temos o recuo que permita pensar de modo mais abrangente esta decantação hoje, mas algo vai se esboçando. Há uma intuição de que é o cinema asiático que está conseguindo melhor condensar o tempo presente -veja "Em Busca da Vida", de Zhang-ke.


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