São Paulo, quarta-feira, 19 de setembro de 2007

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Crítica/circo

"Alegría" se dilui em eficácia clean para hotel de Las Vegas

Mas o segundo espetáculo do Cirque du Soleil tem seus momentos inquietantes

SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Criado para festejar o décimo ano do Cirque du Soleil, em 1994, "Alegría" se mantém desde então em cartaz como um favorito do seu extenso repertório (são 15 títulos apresentados simultaneamente neste ano pelo mundo inteiro). O que é surpreendente para um espetáculo concebido inicialmente para flertar com o sombrio.
Segundo espetáculo da companhia, propõe-se como um insolente desafio à tristeza do mundo, como revela o texto no programa do diretor Franco Dragone: "As crianças de rua não verão "Alegría". Rir continua sendo um luxo que não está ao alcance delas. Esta noite, nossos gritos de alegria se transformarão em gritos de raiva pelos milhões de jovens corações que voltarão a congelar nos meios-fios da nossa boa vontade".
Assim, os mestres-de-cerimônia, homens-pássaros aristocratas decadentes, alinhavam os números com um humor nostálgico por trás de suas máscaras grotescas. Fleur, um polichinelo amargo, passeia pelo público bradando "alegria!", quase com sarcasmo, como se soubesse que seu feudo ancestral (o velho circo?) estava condenado a desaparecer. Felizmente, a alegria do mundo se salva graças aos alvíssimos anjos do novo circo, anunciadores do admirável mundo novo da nova ordem social.
O inquietante expressionismo dos melhores números, como o do extraordinário clown Rénald Laurin, um amante infeliz perdido em uma estação de trem, em meio a uma nevasca, com a doce poética dos pesadelos, se dilui na eficácia clean, indispensável para o setor dos hotéis de luxo de Las Vegas, principal mercado consumidor do Cirque du Soleil.
Voluntariamente ou não, há pouca alegria neste "Alegría".
Os performers mantêm uma placidez quase triste, serenos e eficientes como condutores de trens, em uma vertiginosa sucessão de números que o set designer Michel Crête permite com inesgotável criatividade: o palco se abre para camas elásticas, a rede de proteção para o trapézio de vôo arma-se em segundos com a ajuda do próprio público e, nem sempre alegre, o espetáculo flui com constante dinamismo.
Não há razão para menosprezar o "homem-voador" Aleksandr Dobrynin, que realiza de muito perto o sonho de Peter Pan graças a uma técnica inovadora de elásticos; nem a ciência exata das "barras russas"; nem a intensa ternura de Marcos de Oliveira Casuo, que honra o alto nível dos palhaços brasileiros. Mas é de se perguntar o que há de tão novo nesse novo circo: o fio da meada dramatúrgico, ponto de honra do que deveria ser uma fusão de várias artes, se revela no fundo quase um pretexto -por que surge um anjo de muletas em meio ao número de contorcionismo?
"Alegría", portanto, tem o tom de um bufão desarmado de sua insolência, como um Ghelderode tratado a fluoxetina. Bem delimitado pelos meios-fios da boa vontade do patrocínio milionário, o Cirque du Soleil, concebido como revolução, se impõe hoje como uma empresa bem-sucedida. Bombom embrulhado em finíssima embalagem, não deixa de ser chocolate.


CIRQUE DU SOLEIL - ALEGRÍA
Avaliação:
regular


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