São Paulo, sábado, 19 de setembro de 2009

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RODAPÉ LITERÁRIO

Holocaustos da razão


Poemas de Leandro Sarmatz transformam condição judaica em ponto de vista crítico da linguagem


MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

O NEOLOGISMO "Logocausto", título do livro de estreia de Leandro Sarmatz, faz óbvia menção ao Holocausto dos judeus na Segunda Guerra e indica que estamos diante de um autor que expõe suas raízes. Nada óbvia é a maneira como esse poeta gaúcho extrai daí uma reflexão sobre a própria linguagem.
A temática judaica aparece de modo tímido na literatura brasileira.
Metafísica em Clarice Lispector, quase abjeta na forma como Samuel Rawet a renega (traição das origens que reencena em chave masoquista os massacres da história), nostálgica e fantástica na prosa de Moacyr Scliar, irônica em Bernardo Ajzenberg ou Cíntia Moscovich, essa tradição não se confunde com a onda contemporânea da literatura que dá voz a minorias ou grupos étnicos.
Talvez porque os judeus sejam atravessados pela experiência do exílio, o enraizamento se traduz em impossibilidade: "Uma língua de mortos. Idioma anti-segredo, a sibilar no espelho/ seu eco de cova no indoeuropeu ainda./ Todas aquelas bocas costuradas, milhões de bocas e mais nenhuma./ Onde haverá céu para suportar tantas vozes elevadas?"
A referência ao iídiche (língua quase extinta dos judeus do Leste Europeu) e às fossas dos campos de extermínio nazistas reiteram a pergunta: onde estava o deus do "povo eleito" quando permitiu o horror?
Esse lamento, que aparece de modo enviesado no romeno de expressão alemã Paul Celan ou na argentina Tamara Kamenszain, pode parecer algo deslocado num brasileiro nascido em 1973 e, portanto, distante de acontecimentos tão traumáticos.
Se é de se supor que Sarmatz não traga tais marcas em sua história pessoal, sua poética as persegue como um compromisso ético da escrita. Em "Ecologia da Memória", a "semente espúria de nascença", a danação bíblica, "penetra em cada poro, cova, kadish", com a oração aos mortos se transformando em percepção corpórea, em indisposição fundamental.
Sarmatz percebe no desamparo teológico na "espera do messias fajuto" em que "é deus aquele canastrão aposentado" um ponto de fuga crítico em relação ao presente, no qual a ironia descompromissada com que a poesia brasileira se defende das mazelas do mundo desemboca no "catar-se na miudeza, na arte,/ (quase municipal) de recolher-se" (mesclo aqui versos de diferentes poemas).
O narcisismo pós-moderno (como no poema "Portnoy's Complaint", glosa do escritor judeu Philip Roth) e o turismo por uma Europa que não passa de "casca de banana política, outro pogrom" (referência ao assassinato de comunidades judaicas na Rússia oitocentista) compõem uma paisagem aterradora dessa razão ("logos") que não consegue evitar novos holocaustos.


LOGOCAUSTO

Autor: Leandro Sarmatz
Editora: Editora da Casa
Quanto: R$ 20 (38 págs.)
Avaliação: ótimo




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